domingo, 31 de outubro de 2010

O Arrependimento de Pedro e de Judas por Pasolini e Bach



No filme de Pasolini Evangelho Segundo S. Mateus há um contraste entre o arrependimento de Pedro e o de Judas, marcado pela banda sonora. Quando Pedro nega Jesus ouve-se a parte instrumental da ária Erbarme dich da Paixão Segundo S. Mateus, de Bach, que o acompanha durante todo o percurso do seu arrependimento, da sua humilhação, das suas lágrimas. Esta ária na Paixão Segundo S. Mateus de Bach corresponde exactamente ao mesmo momento da vida de Pedro, funcionando como uma espécie de introspecção de Pedro após a tríplice negação de Jesus. É um momento não tanto ilustrativo, mas mais contemplativo, de paragem da narrativa e de aprofundamento interior. Nas Paixões de Bach, a história é contada pelo narrador (evangelista e personagens que aparecem no evangelho) por meio de recitativos e pequenos coros em que é posto em música o texto do evangelho, como forma de fazer a história avançar. Este ritmo narrativo é interrompido pelas árias, coros e corais como momentos contemplativos, que são também os momentos em que brilham os solistas e o compositor, à maneira do que acontecia na ópera barroca.

O arrependimento de Judas, no filme, passa pela devolução do dinheiro – em que se ouve uma melodia de blues, cantada mas sem palavras –, e pelo percurso que o leva ao suicídio, que é marcado pela total ausência de música. Só se ouve o vento e os seus passos. Há um silêncio esmagador, porque é o silêncio do vazio, do desespero, da ausência, da negação. Neste momento dramático, ao contrário do que nos acontece habitualmente, a sua vida não tem banda sonora.

Já o caminho de Pedro é marcado por uma confiança expressa por esta música de Bach, que não apaga o silêncio interior, mas, paradoxalmente, a própria música, no próprio acto de emitir som, produz um silêncio orante, de plenitude, de escuta, de abertura.

Pasolini usa apenas a secção instrumental da ária. Tal como numa imagem o olhar é atraído para a figura humana (quando esta está presente), e desta para o rosto, e deste para os olhos, na música, o ouvido é atraído pela a voz (quando esta está presente). Além disso, quando são proferidas palavras há um desvio da atenção para tentar perceber o que está a ser dito. Ao optar por cortar toda a secção cantada, Pasolini concentra a atenção no sofrimento de Pedro sem o explicar por meio de palavras, mas também sem violar a sua intimidade. Não há nada de voyeurístico nem de exploração gratuita do sofrimento no modo como este momento é apresentado. A ausência da voz e das palavras funciona no plano musical como o afastamento da câmara que acontece no plano visual, por pudor, por respeito.

Esta secção instrumental desta ária de Bach já antes se tinha ouvido, concretamente num dos discursos de Jesus, Mt 6,25-34 (enquanto que os outros discursos foram feitos em silêncio de fundo):

25«Por isso vos digo: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? 26Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas?

27Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? 28Porque vos preocupais com o vestuário?

Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! 29Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. 30Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé?

31Não vos preocupeis, dizendo: ‘Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?’ 32Os pagãos, esses sim, afadigam-se com tais coisas; porém, o vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. 33Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo. 34Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu problema.»

Também se ouve imediatamente depois de Jesus dizer que o seu jugo é suave e a sua carga é leve, pegando numa criança ao colo. Também quando vem ter com Jesus o jovem rico a quem Jesus diz que deixe os seus bens para O seguir; quando abençoa as crianças; no anúncio do abandono dos discípulos e da negação de Pedro; na oração de Jesus no horto e quando encontra os discípulos a dormir. E por fim nas negações e no arrependimento de Pedro.

É interessante notar que todas estas passagens têm em comum a confiança e o abandono nas mãos de Deus. Ao associar esta ária a estes momentos, Pasolini usa a música como um leitmotiv já não de uma personagem, como na música de Wagner ou de Puccini, por exemplo, mas de um tema. Assim, ao longo do filme, vão sendo apresentados prenúncios do tema da confiança que culmina nas lágrimas de Pedro, como expressão da atitude do discípulo com o qual o espectador é convidado a identificar-se no seguimento de Jesus.




Mt 26, 69-75: 69Entretanto, Pedro estava sentado no pátio. Uma criada aproximou-se dele e disse-lhe: «Tu também estavas com Jesus, o Galileu.» 70Mas ele negou diante de todos, dizendo: «Não sei o que dizes.» 71Dirigindo-se para a porta, outra criada viu-o e disse aos que ali estavam: «Este também estava com Jesus, o Nazareno.» 72Ele negou de novo com juramento: «Não conheço esse homem.» 73Um momento depois, aproximaram-se os que ali estavam e disseram a Pedro: «Com certeza tu és dos seus, pois até a tua maneira de falar te denuncia.» 74Começou, então, a dizer imprecações e a jurar: «Não conheço esse homem!»
No mesmo instante, o galo cantou. 75E Pedro lembrou-se das palavras de Jesus: «Antes de o galo cantar, me negarás três vezes.» E, saindo para fora, chorou amargamente.

Ária Erbarme dich:

Erbarme dich,

Mein Gott, um meiner Zähren willen!

Schaue hier,

Herz und Auge weint vor dir

Bitterlich.

Tem piedade,

Meu Deus, pelo meu pranto!

Vê,

Coração e olhos choram perante ti

Amargamente.


Já agora, o momento equivalente ao arrependimento de Judas na Paixão Segundo S. Mateus de Bach:



Mt 27,1-6: 1De manhã cedo, todos os sumos sacerdotes e anciãos do povo se reuniram em conselho contra Jesus, para o matarem. 2E, manietando-o, levaram-no ao governador Pilatos. 3Então Judas, que o entregara, vendo que Ele tinha sido condenado, foi tocado pelo remorso e devolveu as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: 4«Pequei, entregando sangue inocente.» Eles replicaram: «Que nos importa? Isso é lá contigo.» 5Atirando as moedas para o santuário, ele saiu e foi enforcar-se. 6Os sumos sacerdotes, apanhando as moedas, disseram: «Não é lícito lançá-las no tesouro, pois são preço de sangue.»

Ária Gebt mir meinen Jesum wieder:

Gebt mir meinen Jesum wieder!

Seht, das Geld, den Mörderlohn,

Wirft euch der verlorne Sohn

Zu den Füβen nieder!

Devolvam-me o meu Jesus!

Vede, o dinheiro, preço de sangue,

O filho perdido atira-o

Aos vossos pés!


Poemas do libretista Christian Friedrich Henricis (cujo pseudónimo era Picander).

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