terça-feira, 26 de outubro de 2010

Esquema da Tipificação de cenas no Evangelho segundo Marcos

Tomando o Evangelho segundo São Marcos, percebemos que apesar de se socorrer de fontes orais ou escritas, Marcos estabeleceu um esquema de narração para cristaliza-los na sua obra. Dentro do cariz pragmático e sucinto com que Marcos pauta o seu texto, percebemos que tinha em mente o objectivo de tornar mentalmente associáveis passagens sobre milagres e exorcismos. De certo modo, também pretendia permitir que estes trechos fossem decorados a julgar pela visível aplicação de um esquema mnemónico.

Portanto, a sua tipificação que aplica aos milagres baseava-se geralmente em seis partes. Se omitia algum desses elementos talvez fosse pela aplicação da estratégia de economia de narração que marca a sua obra.

O trecho escolhido para aplicarmos e apresentarmos este esquema de seis partes foi Mc 9,14-29:

14Ia ter com os seus discípulos, quando viu em torno deles uma grande multidão e uns doutores da Lei a discutirem com eles. 15Assim que viu Jesus, toda a multidão ficou surpreendida e acorreu a saudá-lo. 16Ele perguntou: «Que estais a discutir uns com os outros?» 17Alguém de entre a multidão disse-lhe: «Mestre, trouxe-te o meu filho que tem um espírito mudo. 18Quando se apodera dele, atira-o ao chão, e ele põe-se a espumar, a ranger os dentes e fica rígido. Pedi aos teus discípulos que o expulsassem, mas eles não conseguiram.» 19Disse Jesus: «Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei-de suportar? Trazei-mo cá.» 20E levaram-lho.

Ao ver Jesus, logo o espírito sacudiu violentamente o jovem, e este, caindo por terra, começou a estrebuchar, deitando espuma pela boca. 21Jesus perguntou ao pai: «Há quanto tempo lhe sucede isto?» Respondeu: «Desde a infância; 22e muitas vezes o tem lançado ao fogo e à água, para o matar. Mas, se podes alguma coisa, socorre-nos, tem compaixão de nós.»

23«Se podes...! Tudo é possível a quem crê», disse-lhe Jesus.

24Imediatamente o pai do jovem disse em altos brados: «Eu creio! Ajuda a minha pouca fé!»

25Vendo, Jesus, que acorria muita gente, ameaçou o espírito maligno, dizendo: «Espírito mudo e surdo, ordeno-te: sai do jovem e não voltes a entrar nele.» 26Dando um grande grito e sacudindo-o violentamente, saiu. O jovem ficou como morto, a ponto de a maioria dizer que tinha morrido. 27Mas, tomando-o pela mão, Jesus levantou-o, e ele pôs-se de pé.

28Quando Jesus entrou em casa, os discípulos perguntaram-lhe em particular: «Porque é que nós não pudemos expulsá-lo?» 29Respondeu: «Esta casta de espíritos só pode ser expulsa à força de oração.»


Primeiramente, surge-nos a aproximação do doente até Jesus, que neste texto é feito em dois tempos: Jesus aproxima-se da multidão à volta dos discípulos, e a multidão desloca a atenção para Ele, juntamente com a mãe do doente que lhe explica aquela reunião.

14Ia ter com os seus discípulos, quando viu em torno deles uma grande multidão e uns doutores da Lei a discutirem com eles. 15Assim que viu Jesus, toda a multidão ficou surpreendida e acorreu a saudá-lo. 16Ele perguntou: «Que estais a discutir uns com os outros?» 17Alguém de entre a multidão disse-lhe: «Mestre, trouxe-te o meu filho que tem um espírito mudo. 18Quando se apodera dele, atira-o ao chão, e ele põe-se a espumar, a ranger os dentes e fica rígido.


O resultado deste encontro é o segundo momento, composto por um pedido. Neste trecho, como o doente encontra-se sob a influência do espírito mudo é a mãe que apresenta a petição a Jesus, o mesmo pedido que havia sido feito aos discípulos. São, por isso, os figurantes anónimos que fazem a deslocação do doente, como que num segundo momento da aproximação: mas aqui não é tão relevante, pois é uma questão meramente secundária.

19Disse Jesus: «Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei-de suportar? Trazei-mo cá.» 20E levaram-lho.

Ao ver Jesus, logo o espírito sacudiu violentamente o jovem, e este, caindo por terra, começou a estrebuchar, deitando espuma pela boca.


O terceiro elemento é composto por um obstáculo que serve de revelação da fé dos intervenientes. Neste caso, é feito ao pai do endemoniado que, entretanto, aparece em cena e faz a sua declaração de fé.

21Jesus perguntou ao pai: «Há quanto tempo lhe sucede isto?» Respondeu: «Desde a infância; 22e muitas vezes o tem lançado ao fogo e à água, para o matar. Mas, se podes alguma coisa, socorre-nos, tem compaixão de nós.»

23«Se podes...! Tudo é possível a quem crê», disse-lhe Jesus.

24Imediatamente o pai do jovem disse em altos brados: «Eu creio! Ajuda a minha pouca fé!»


Seguidamente, surge o toque ou a ordem de Jesus, sempre antecedendo a cura. O trecho apresenta Jesus falando imperiosamente ao espírito para abandonar aquele filho, mas acaba por lhe tocar, ajudando o curado a levantar-se.

25Vendo, Jesus, que acorria muita gente, ameaçou o espírito maligno, dizendo: «Espírito mudo e surdo, ordeno-te: sai do jovem e não voltes a entrar nele.» 26Dando um grande grito e sacudindo-o violentamente, saiu. O jovem ficou como morto, a ponto de a maioria dizer que tinha morrido. 27Mas, tomando-o pela mão, Jesus levantou-o, e ele pôs-se de pé.


O quinto elemento do efeito produzido, ou da cura, é apresentado juntamente com o elemento anterior.

Primeiro, temos a expulsão do demónio:

«Espírito mudo e surdo, ordeno-te: sai do jovem e não voltes a entrar nele.»

Depois, temos a recuperação dos sentidos e do ânimo do curado:

Mas, tomando-o pela mão, Jesus levantou-o...


Após estes cinco elementos, temos a reacção dos presentes que atestam o facto miraculoso. Também está presente nesta passagem, mas, de forma particular, está reservada a uma conversa explicatória às dúvidas dos discípulos:

28Quando Jesus entrou em casa, os discípulos perguntaram-lhe em particular: «Porque é que nós não pudemos expulsá-lo?» 29Respondeu: «Esta casta de espíritos só pode ser expulsa à força de oração.»

Este esquema, tem claramente repercussão na maioria das passagens que se referem aos milagres e curas, apresentando-o como parte da estilística própria em Marcos e que denota a especial atenção ao leitor, ao serviço da sua reflexão e consequente adesão de fé. Toda esta riqueza aparece estranhamente escondida por um texto de ritmo acelerado e aparentemente simples, mas que não é de modo algum ingénuo. Estes recursos literários revelam um Evangelho de Marcos, que é, afinal, obra engenhosa e de objectivos concretos.

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