terça-feira, 26 de outubro de 2010

Identificação da sequência narrativa Mt 8,23-34


Em Mt 8, 23–34 podemos detectar uma etapa do Evangelho, com um tema central – o poder de Jesus sobre as forças do mal – através de acções e gestos, particularmente a expulsão de demónios ou “exorcismo”, com os quais Jesus mostra a sua autoridade e vai revelando a sua identidade.
Embora no entorno do Mar da Galileia, uma mudança de espaço – o próprio mar e a “outra margem” - mas também de tempo – depois do entardecer, certamente à noite - inaugura a sequência narrativa, composta por dois micro-relatos – a “Tempestade acalmada” (Mt 8,23-27) e os “Possessos de Gádara” (Mt 8, 28-34) - que podemos identificar através do cambio de alguns elementos: mudanças temporais, mudanças espaciais e mudança de personagens.

II - Análise do micro-relato Mt 8, 28-34: Os endemoninhados de Gádara

28Chegado à outra margem, à região dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois possessos, que habitavam nos sepulcros. Eram tão ferozes que ninguém podia passar por aquele caminho. 29Vendo-o, disseram em alta voz: «Que tens a ver connosco, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?» 30Ora, andava a pouca distância dali, a pastar, uma grande vara de porcos. 31E os demónios pediram-lhe: «Se nos expulsas, manda-nos para a vara de porcos.» 32Disse-lhes Jesus: «Ide!» Então, eles, saindo, entraram nos porcos, que se despenharam por um precipício, no mar, e morreram nas águas.
33Os guardas fugiram e, indo à cidade, contaram tudo o que se tinha passado com os possessos. 34Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus e, vendo-o, rogaram-lhe que se retirasse daquela região.

1. Aplicação do esquema quinário:
a) Situação inicial – Mt 8, 28:
28Chegado à outra margem, à região dos gadarenos,

O narrador descreve a situação antes de se colocar qualquer problema.

b) “Nó” – Mt 8, 28-29:
28 (…) vieram ao seu encontro dois possessos, que habitavam nos sepulcros. Eram tão ferozes que ninguém podia passar por aquele caminho. 29Vendo-o, disseram em alta voz: «Que tens a ver connosco, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?»

Encontramos aqui a narração do problema central: o choque de Jesus com as forças do mal. Perante a presença de Jesus os possessos sentem-se ameaçados. Se os homens não reconhecem Jesus, já os demónios conhecem-no bem.

c) Acção transformadora - Mt 8, 30-32:
30Ora, andava a pouca distância dali, a pastar, uma grande vara de porcos. 31E os demónios pediram-lhe: «Se nos expulsas, manda-nos para a vara de porcos.» 32Disse-lhes Jesus: «Ide!»

A “acção transformadora” acontece desde logo pela presença de Jesus, que se impõe a Satanás e destrói o seu “império”. O exorcismo dos demónios culmina na palavra de Jesus «Ide!»
Estes versículos relatam-nos, assim, a autoridade de Jesus, que se revela através do seu agir.

d) Desenlace - Mc 8, 32
Então, eles, saindo, entraram nos porcos, que se despenharam por um precipício, no mar, e morreram nas águas.

O problema resolve-se com a expulsão dos demónios que possuem, então, a vara de porcos, animais impuros. Estes precipitam-se no mar, símbolo dos abismos e refúgio das forças do mal: Jesus triunfa sobre o demónio.

e) Situação final – Mc 5, 42-43
33Os guardas fugiram e, indo à cidade, contaram tudo o que se tinha passado com os possessos. 34Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus e, vendo-o, rogaram-lhe que se retirasse daquela região.

Os guardas dos porcos, que presenciaram a acção libertadora de Jesus, ficam assustados com o sucedido e fogem. Os habitantes da cidade não querem acolher a libertação de Jesus, seja pelo medo face ao impacto do exorcismo, seja pelo prejuízo material causado, o que revelaria estarem demasiado apegados aos bens terrenos ignorando a salvação oferecida por Cristo

2. Intriga – Quanto à intriga, o relato apresenta uma intriga de resolução e de revelação: de resolução, pois os possessos são libertados do poder de satanás; de revelação, porque o exorcismo é revelador do poder e da autoridade de Jesus, que se impõe às forças do mal.

3. Personagens - Neste micro-relato encontramos diversos tipos de personagens:

1) Planas – Aparentemente, o povo da cidade não se abre à acção salvífica de Jesus.
2) Redondas – Como personagem redonda, que sofre transformação ao longo do relato, temos os próprios possessos, ferozes, que sofrem uma profunda transformação, ficando libertos do poder do maligno.
3) Opositoras – O povo da cidade, opositor da acção salvadora de Cristo.

Focalização externa: grande parte do relato apresenta o que se poderia ver se estivesse presente: «Se nos expulsas, manda-nos para a vara de porcos.»

Focalização Zero: o narrador fornece indicações suplementares que ultrapassam o momento da cena, mas que são importantes para compreender as personagens: «Eram tão ferozes que ninguém podia passar por aquele caminho.»

4. Enquadramento
Espaço:
O relato acontece já no território da “outra margem” do Mar da Galileia, “na região dos gadarenos”. Temos, portanto, uma descrição topográfica, mas também política, que localiza o início do relato na margem do Mar da Galileia, nas imediações da cidade de Gádara, na Decápole, região helenista, pagã.
Há, contudo, também um sentido simbólico do espaço, uma carga sémica, pois a Decápole era um país pagão, o que acentua a universalidade da acção salvadora de Jesus. Ainda dentro desta carga sémica do espaço, sabemos que os possessos viviam em sepulcros, espaços geralmente com câmaras que proporcionariam abrigo a excluídos e marginais, o que acentua a marginalidade dos possessos. Possuídos pelo “poder das trevas”, estes habitavam na região dos mortos. Por fim, é-nos indicado que a acção decorre junto a um precipício à beira do mar: tudo remete para a simbólica dos “abismos”, refúgio das forças do mal.

Tempo:
O relato começa com uma indicação temporal - «Chegado à outra margem» - ou seja, a acção desenrola-se logo após o desembarque.
O tempo deste relato tem um valor factual, mortal, ou cronológico. Tudo acontece depois de Jesus ter atravessado, no barco, certamente de noite, para a outra margem.
Mas encontramos também um tempo monumental, simbólico, pois os próprios endemoninhados referem que ainda não é “o tempo”, e que Jesus está a agir «antes do tempo», ou seja, antes da vitória final sobre as forças do mal.

5. Situação de relato
A situação de relato é, sobretudo, uma”cena”, pois há uma identificação entre a história contada e o tempo do contar, como que em “tempo real”. Mas encontramos também uma situação de “sumário”, em que o tempo do relato é mais curto do que o da história: «Os guardas fugiram e, indo à cidade, contaram tudo o que se tinha passado com os possessos. Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus e, vendo-o, rogaram-lhe que se retirasse daquela região.»

Diogo Correia
N.º 114107515

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