quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Análise textual

Sequência em Mt 22,15-46:

15Então, os fariseus reuniram-se para combinar como o haviam de surpreender nas suas próprias palavras. 16Enviaram-lhe os seus discípulos, acompanhados dos partidários de Herodes, a dizer-lhe: «Mestre, sabemos que és sincero e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, sem te deixares influenciar por ninguém, pois não olhas à condição das pessoas. 17Diz-nos, portanto, o teu parecer: É lícito ou não pagar o imposto a César?» 18Mas Jesus, conhecendo-lhes a malícia, retorquiu: «Porque me tentais, hipócritas? 19Mostrai-me a moeda do imposto.» Eles apresentaram-lhe um denário. 20Perguntou: «De quem é esta imagem e esta inscrição?» 21«De César» - responderam. Disse-lhes então: «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.» 22Quando isto ouviram, ficaram maravilhados e, deixando-o, retiraram-se. 23Nesse mesmo dia, os saduceus, que não acreditam na ressurreição, foram ter com Ele e interrogaram-no. 24«Mestre, Moisés disse: Se algum homem morrer sem filhos, o seu irmão casará com a viúva, para suscitar descendência ao irmão. 25Ora, entre nós havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu sem descendência, deixando a mulher a seu irmão; 26sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim até ao sétimo. 27Depois de todos eles, morreu a mulher. 28Então, na ressurreição, de qual dos sete será ela mulher, visto que o foi de todos?» 29Jesus respondeu-lhes: «Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. 30Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu. 31E, quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus disse: 32Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob? Não dos mortos, mas dos vivos é que Ele é Deus!» 33E a multidão, ouvindo-o, maravilhava-se com a sua doutrina. 34Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. 35E um deles, que era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: 36«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» 37Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. 38Este é o maior e o primeiro mandamento. 39O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. 40Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.» 41Estando os fariseus reunidos, Jesus interrogou-os: 42«Que pensais vós do Messias? De quem é filho?» Responderam-lhe: «De David.» 43Disse-lhes Ele: «Como é, então, que David, sob a influência do Espírito, lhe chama Senhor, dizendo: 44Disse o Senhor ao meu Senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que Eu ponha os teus inimigos por estrado de teus pés’? 45Ora, se David lhe chama Senhor, como é seu filho?» 46E ninguém soube responder-lhe palavra. A partir de então, ninguém mais se atreveu a interrogá-lo.


Este conjunto textual aparece com uma relação entre si baseada quer no momento que lhe antecede quer no momento que lhe sucede.

No momento imediatamente anterior vemos Jesus, neste Evangelho segundo São Mateus, capítulo 21, a dirigir várias parábolas à multidão de Jerusalém, que os sacerdotes e os fariseus escutam e compreendem serem-lhes dirigidas (cf. Mt 21,45). É então deste mesmo ponto que parte a sequência seguinte, em que fariseus e saduceus tentam apanhar Jesus através de ardis que sucessivamente lhe vão colocando. Os dirigentes do povo estão à espera de o puder apanhar e descredibilizar frente à multidão, que venera Jesus e as suas palavras (cf. Mt 21,15.45) De facto, querendo apanhar Jesus não o tinham feito por medo da multidão (cf. Mt 21,46).

Assim se estabelecem os laços desta sequência. É pois o tema e a personagem de Jesus sendo interrogada ou dialogando com os diferentes partidos, que liga os micro-relatos aqui presentes. O palco é a cidade de Jerusalém, onde Jesus havia feito sucessivas pregações em dias diferentes, das quais a primeira Mateus refere ter ocorrido no Templo, concomitantemente com a expulsão dos vendilhões e cambistas. Jesus proclama várias parábolas contra a autoridade religiosa instituída que não reconhece a chegada do Reino de Deus. Após a parábola das bodas do filho do rei (cf. Mt 22,1-14), iniciam-se as sucessivas tentativas dos partidários religiosos para surpreenderem Jesus (cf. Mt 22,15), mas que falham de todas as vezes, até ao ponto em que ficam sem palavras e desistem (cf.Mt 22,46).

A sequência interrompe-se, dando início a uma outra fase em que Jesus se vira para as multidões e para os discípulos (cf. Mt 23,1) e alerta todos para escutarem a palavra das autoridades, mas não para lhes imitar as más obras (cf. Mt 23,2). Este é o grande tema que vai marcar o discurso de Jesus, que se segue à sequência apresentada (cf. Mt 23,1-36).


Divisão da sequência em micro-relatos

Dentro de uma sequência, a distinção dos micro-relatos é feita a partir das diferenças de algumas características que geralmente são introduzidas em cada micro-relato. Evidenciam essa a divisão o tempo, o espaço, as personagens e o tema.

Assim, na sequência apresentada anteriormente apresentamos a seguinte divisão em micro-relatos:

1º Micro-relato

15Então, os fariseus reuniram-se para combinar como o haviam de surpreender nas suas próprias palavras. 16Enviaram-lhe os seus discípulos, acompanhados dos partidários de Herodes, a dizer-lhe: «Mestre, sabemos que és sincero e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, sem te deixares influenciar por ninguém, pois não olhas à condição das pessoas. 17Diz-nos, portanto, o teu parecer: É lícito ou não pagar o imposto a César?» 18Mas Jesus, conhecendo-lhes a malícia, retorquiu: «Porque me tentais, hipócritas? 19Mostrai-me a moeda do imposto.» Eles apresentaram-lhe um denário. 20Perguntou: «De quem é esta imagem e esta inscrição?» 21«De César» - responderam. Disse-lhes então: «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.» 22Quando isto ouviram, ficaram maravilhados e, deixando-o, retiraram-se.

O tempo é imediatamente a seguir à pregação de Jesus e a uma reunião dos fariseus. O espaço é a cidade de Jerusalém, provavelmente o Templo, que é o último espaço referido pelo Evangelista quando localiza os discursos anteriores. Mas independentemente dessas referências extra-sequênciais, é com certeza um lugar onde Jesus se encontrava com uma multidão reunida à sua volta. O espaço distinto que se refere primeiramente, onde os fariseus se reuniram, parece apenas uma referência com o intuito de contextualizar o leitor, sobre as personagens que realmente intervêm e que são os discípulos enviados pelos fariseus com os herodianos. O tema concreto do relato, para além do que introduz a sequência (surprender Jesus numa cilada), é a questão da tributação e da sua legitimidade, questão sensível ao Judeus sob a autoridade romana.

2º Micro-relato

23Nesse mesmo dia, os saduceus, que não acreditam na ressurreição, foram ter com Ele e interrogaram-no. 24«Mestre, Moisés disse: Se algum homem morrer sem filhos, o seu irmão casará com a viúva, para suscitar descendência ao irmão. 25Ora, entre nós havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu sem descendência, deixando a mulher a seu irmão; 26sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim até ao sétimo. 27Depois de todos eles, morreu a mulher. 28Então, na ressurreição, de qual dos sete será ela mulher, visto que o foi de todos?» 29Jesus respondeu-lhes: «Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. 30Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu. 31E, quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus disse: 32Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob? Não dos mortos, mas dos vivos é que Ele é Deus!» 33E a multidão, ouvindo-o, maravilhava-se com a sua doutrina.

A necessidade de uma referência temporal quer distinguir este encontro do primeiro, mesmo sendo durante o mesmo dia. O espaço, por seu lado, será o mesmo ou, pelo menos, permanece desconhecido, já que não se encontra explícito. As personagens são agora Jesus e os saduceus, para além da multidão de fundo sempre presente. O tema é a questão da esperança na ressurreição e como ela se articula com os preceitos mosaicos.

3º micro-relato

34Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. 35E um deles, que era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: 36«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» 37Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. 38Este é o maior e o primeiro mandamento. 39O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. 40Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.»

Aqui, novas informações sobre o tempo e o espaço são omitidas, mas ainda que o espaço seja o mesmo, a nível temporal este encontro distingue-se temporalmente do anterior, uma vez que aparece como pressuposto a divulgação do resultado do encontro anterior, antes da iniciativa de um novo confornto com Jesus pelas personagens deste trecho. Os fariseus substituem, portanto, os saduceus face ao momento anterior e sobressai um deles, que era especialista na Lei. O tema é exactamente qual a formulação principal da Lei.

4º micro-relato

41Estando os fariseus reunidos, Jesus interrogou-os: 42«Que pensais vós do Messias? De quem é filho?» Responderam-lhe: «De David.» 43Disse-lhes Ele: «Como é, então, que David, sob a influência do Espírito, lhe chama Senhor, dizendo: 44Disse o Senhor ao meu Senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que Eu ponha os teus inimigos por estrado de teus pés’? 45Ora, se David lhe chama Senhor, como é seu filho?» 46E ninguém soube responder-lhe palavra. A partir de então, ninguém mais se atreveu a interrogá-lo.

Novamente, o tempo e o espaço carecem de novas referências. Apenas como evidência de uma certa diferença temporal surge a necessidade de explicitar a reunião dos fariseus, quando tal já estava esclarecido no micro-relato anterior. Certo é que agora não intervém novamente o legista e é Jesus quem se dirige aos fariseus, contrariando a tendência dos micro-relatos precedentes. O tema é a origem messiânica, seguido da conclusão da sequência, em que os partidos religiosos se dão por vencidos no confronto com Jesus.


Caracterização das Personagens

As personagens pela seu desempenho ao longo do enredo, podem ser consideradas personagens planas ou redondas, adjuvantes ou opositoras. As planas definem-se pela não sofrerem qualquer alteração na sua posição ao longo do enredo. As redondas são classificadas como tal, porque na interacção da trama textual apresentam alterações na sua posição. As adjuvantes colocam-se favoravelmente em relação ao protagonista. As opositoras são aquelas que se revelam adversárias em relação à posição do protagonista.

Se circunscrevermos esta análise à sequência proposta, podemos vislumbrar as seguintes personagens: Jesus, a multidão, e o grupo dos saduceus e dos fariseus, com os seus discípulos e o legista, que integram as mesmas características e a mesma posição na intriga.

Jesus, sendo o protagonista, apresenta-se como uma personagem redonda, se analisarmos por esta perspectiva de que, sendo maioritariamente alvo de ardis, no último micro-relato da sequência, é Ele quem toma a iniciativa de confrontar os fariseus. A multidão, como personagem colectiva mantém sobretudo como fundo do enredo e pouco interveniente. Temos apenas uma referência (cf. Mt 22,33) que indicam uma simpatia se tomámos a expressão “estavam maravilhadas” do grego original. Consideremo-la, portanto, como plana e adjuvante. Os partidários saduceus e fariseus, assumem-se claramente como opositores, visto que desejam surpreender Jesus com as suas questões. Ao longo do texto e das sucessivas tentativas vão sendo silenciados (cf. Mt 22,34.46), e inclusivamente os seus discípulos ficam admirados com a resposta de Jesus (cf. Mt 22,22). Mas no fim da sequência temos claramente a manifestação de que foi frustrada a sua tentativa de apanhar Jesus, já que não mais ousaram questioná-lo, por não terem com que responder (cf Mt 22,46). Posto isto, assumimos que são também personagens redondas, devido a essa alteração na forma de como se manifestam.


Esquema quinário no micro-relato Mt 22,23-33

23Nesse mesmo dia, os saduceus, que não acreditam na ressurreição, foram ter com Ele e interrogaram-no. 24«Mestre, Moisés disse: Se algum homem morrer sem filhos, o seu irmão casará com a viúva, para suscitar descendência ao irmão. 25Ora, entre nós havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu sem descendência, deixando a mulher a seu irmão; 26sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim até ao sétimo. 27Depois de todos eles, morreu a mulher. 28Então, na ressurreição, de qual dos sete será ela mulher, visto que o foi de todos?» 29Jesus respondeu-lhes: «Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. 30Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu. 31E, quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus disse: 32Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob? Não dos mortos, mas dos vivos é que Ele é Deus!» 33E a multidão, ouvindo-o, maravilhava-se com a sua doutrina.

Toda a narrativa exige uma transformação, pois esta é a sua única forma de existir. Isto exige que haja um um nó que seguidamente se desenlace. Este sistema binário, de nó e desenlace, pode ser mais esclarecedor num sistema quinário, que é a sua complexificação, para melhor compreensão da orgânica própria do relato.

Assim, temos primeiro uma “situação inicial” que fornece os dados contextuais do acontecimento. Em seguida, surge o “nó”, um problema em aberto que abre o interesse do relato. Depois, chega-se a um momento preciso, em que se dá uma transformação na linha da intriga, uma viragem a que chamamos a “acção transformadora”. De seguida, dá-se o “desenlace” daquele problema ainda em aberto. Por fim somos deixados na “situação final”.

Neste texto, portanto, a situação inicial aparece aqui:

23Nesse mesmo dia, os saduceus, que não acreditam na ressurreição, foram ter com Ele...

Em seguida chegamos ao ponto em que se dá um nó na intriga e se choca num problema:

...e interrogaram-no. 24«Mestre, Moisés disse: Se algum homem morrer sem filhos, o seu irmão casará com a viúva, para suscitar descendência ao irmão. 25Ora, entre nós havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu sem descendência, deixando a mulher a seu irmão; 26sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim até ao sétimo. 27Depois de todos eles, morreu a mulher. 28Então, na ressurreição, de qual dos sete será ela mulher, visto que o foi de todos?»

Posto isto, dá-se uma acção transformadora na resposta de Jesus:

29Jesus respondeu-lhes: «Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. 30Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu.

Por fim dá-se o desenlace do problema:

31E, quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus disse: 32Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob? Não dos mortos, mas dos vivos é que Ele é Deus!»

Por fim resta-nos esclarecer a situação final:

3E a multidão, ouvindo-o, maravilhava-se com a sua doutrina.

Concluindo, apenas dizer que olhando para esta estrutura, com que se apresenta a intriga, podemos caracterizá-la fundamentalmente como intriga de resolução, já que a hipótese de intriga de revelação não nos parece tão evidente na narrativa.

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