terça-feira, 26 de outubro de 2010

Identificação da sequência narrativa Mc 4, 35 – 5, 43

A sequência de Mc 4, 35 – 5, 43 insere-se numa grande sequência que corresponde ao ministério de Jesus na Galileia: Mc 1, 14 – 7,23.
Em Mc 4, 35 – 5, 43 podemos de facto encontrar uma etapa do Evangelho, com um tema central – quatro milagres de Jesus – acções e gestos, particularmente a expulsão de demónios ou “exorcismos”, com os quais Jesus vai revelando a sua identidade, logo depois do seu ensinamento às multidões com as “Parábolas do Reino”, na sequência imediatamente anterior.
Embora no entorno do Mar da Galileia, uma mudança de espaço, mas também de tempo – o entardecer é o fim do dia e o início do dia seguinte - inaugura a sequência narrativa após as parábolas: «Passemos para a outra margem» Mc 4 35.
Os quatro milagres referidos constituem quatro micro-relatos que podemos identificar através de quatro elementos: mudanças temporais, mudanças espaciais, acompanhadas mudança de personagens e do próprio tema narrativo. O primeiro micro-relato – “a tempestade acalmada” Mc 4, 35-41 – desenrola-se no próprio mar, após a partida de barco temporalmente situada depois do «entardecer». O segundo – “o possesso de Gerasa” Mc 5, 1-20 – acontece já no território da “outra margem” do Mar da Galileia, na região da Decápole, logo após o desembarque: «Logo que Jesus desceu do barco». Por fim, o terceiro e quarto micro-relatos – “a ressurreição da filha de Jairo” Mc 5,21-43, e a “cura da hemorroíssa” Mc 5, 25-34, inserida no primeiro - têm lugar novamente no “outro lado” do mar, num local não definido, mas temporalmente situado «Depois de Jesus ter atravessado».
A sequência seguinte, que começa em Mc 6, 1, é também inaugurada por uma mudança espacial, já que Jesus regressa à sua terra, Nazaré.

II
Análise do micro-relato Mc 5, 21-24 e 5, 35-43: A ressurreição da filha de Jairo

1. Aplicação do esquema quinário:
a) Situação inicial – Mc 5, 21:
21Depois de Jesus ter atravessado, no barco, para a outra margem, reuniu-se uma grande multidão junto dele, que continuava à beira-mar.

O narrador descreve aqui a situação antes de se colocar qualquer problema a Jesus.

b) “Nó” – Mc 5, 22-24 e 35:
22Chegou, então, um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, e, ao vê-lo, prostrou-se a seus pés 23e suplicou instantemente: «A minha filha está a morrer; vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva.» 24Jesus partiu com ele, seguido por numerosa multidão, que o apertava. (…).
35Ainda Ele estava a falar, quando, da casa do chefe da sinagoga, vieram dizer: «A tua filha morreu; de que serve agora incomodares o Mestre?»

Encontramos aqui a narração do problema central, que se agudiza com a notícia da morte da menina.

c) Acção transformadora - Mc 5, 36-41:
36Mas Jesus, que surpreendera as palavras proferidas, disse ao chefe da sinagoga: «Não tenhas receio; crê somente.» 37E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago. 38Ao chegar a casa do chefe da sinagoga, encontrou grande alvoroço e gente a chorar e a gritar. 39Entrando, disse-lhes: «Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu, está a dormir.» 40Mas faziam troça dele. Jesus pôs fora aquela gente e, levando consigo apenas o pai, a mãe da menina e os que vinham com Ele, entrou onde ela jazia.
41Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûm!», isto é, «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!»

A “acção transformadora” acontece logo que Jesus se dirige a Jairo, exortando-o a que tivesse fé. Este é o início da acção que, passando pela escolha dos três apóstolos para o acompanharem e pela indicação expressa de que a menina não morrera, culminará no gesto de cura por parte de Jesus, quando toma a mão da menina, que jazia deitada.
Estes versículos relatam-nos, pois, não só a acção concreta que resolverá o problema, que seria apenas o gesto de tomar a mão da menina, mas a própria autoridade de Jesus, que se revela através do seu agir, a ponto de se indignar e expulsar os mais incrédulos sobre a sua pessoa.

d) Desenlace - Mc 5, 42
42E logo a menina se ergueu e começou a andar, pois tinha doze anos. (…).

O problema resolve-se com a cura da filha de Jairo pela acção de Jesus.

e) Situação final – Mc 5, 42-43
42(…) Todos ficaram assombrados. 43Recomendou-lhes vivamente que ninguém soubesse do sucedido e mandou dar de comer à menina.

Os presentes reconhecem o milagre, ficando “assombrados” com o sucedido.

2. Intriga – Quanto à intriga, o relato apresenta uma intriga de resolução e de revelação: de resolução, pois o “problema” – doença e morte da filha de Jairo – é solucionado; de revelação, porque tudo conduz à cena em que acontece o “milagre” revelador do poder e da autoridade de Jesus e, como tal, do mistério da sua identidade.

3. Personagens - Neste micro-relato encontramos diversos tipos de personagens:

1) Planas – Jairo é uma personagem “plana”, que não sofre transformação ao longo do relato. Profundamente convicto de que Jesus resolverá o problema da filha - «vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva» Mc 5,23 - é desde o início retratado como um homem de fé, que o próprio Jesus encoraja.

2) Redondas – Como personagem redonda, que sofre transformação ao longo do relato, temos a personagem colectiva dos presentes em casa de Jairo, que sofrem uma profunda transformação, pois de uma atitude incrédula face às palavras de Jesus, que os leva a fazer «troça dele», se enchem de assombro perante a sua acção milagrosa.

3) Opositoras – Esse mesmo povo reunido em casa de Jairo, que troça das palavras de Jesus, é, em determinado momento, opositor da sua acção salvadora.

4) Adjuvantes – Os apóstolos que vinham com Jesus – Pedro, Tiago e João - e o próprio pai da menina são aqui personagens adjuvantes, que acompanham e colaboram com Jesus.

4 - Enquadramento
Espaço – Neste relato encontramos dois espaços diferenciados: um exterior e outro interior. O espaço exterior é constituído pela margem do lago, onde a multidão se aglomera para ver Jesus - «reuniu-se uma grande multidão junto dele, que continuava à beira-mar» - e as próprias ruas da localidade onde se desenrola a cena, que Jesus atravessa para se dirigir à casa do chefe da sinagoga, sempre «seguido por numerosa multidão». Temos portanto uma descrição topográfica, que localiza o início do relato na margem do Mar da Galileia.
Contudo, o culminar da narrativa acontece num espaço interior, “circular”, de proximidade: a casa de Jairo e, dentro desta, a divisão onde jazia a menina. É nesse espaço de intimidade, ao abrigo dos olhares indiscretos da «gente a chorar e a gritar», que a acção salvífica de Jesus se realiza. Estão presentes apenas os “eleitos” por Jesus: o pai, Jairo, homem de fé, humilde, que no meio da multidão se prostrou aos pés de Jesus, capaz de entender os seus sinais e os seus gestos; e os três apóstolos, que serão eles próprios testemunhas privilegiadas de outros grandes momentos que revelam o Cristo - a transfiguração e a agonia. Esta intimidade reforça o ocultamento intencional que Jesus faz do mistério da sua identidade, “segredo” que impõe aos que o rodeiam. Essa identidade só é revelada aos verdadeiros “discípulos”, aos que demonstram ter fé inabalável, e, por isso, o gesto da “cura” não é visível a todos. A intimidade da “ressurreição” da menina acontece sob o olhar da fé.

Tempo:
O tempo deste relato tem um valor sobretudo factual, mortal, ou cronológico. Não há grandes referências temporais a não ser que tudo acontece «Depois de Jesus ter atravessado, no barco, para a outra margem». Não encontramos, assim, na descrição do tempo um valor monumental ou simbólico.
A situação de relato é uma”cena”, pois há uma identificação entre a história contada e o tempo do contar, como que em “tempo real”.

Diogo Correia
N.º 114107515

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