quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Lucas escreve um “Evangelho”


Um dos pontos mais marcantes em Lucas e que sobressai de modo especial, como seu rasgo mais marcante, é o tema da visão. Acontece de forma exemplar no episódio de Zaqueu (Lc 19,1-9) que “quer ver Jesus” num verdadeiro sentido relacional. Essa relação acontece, de facto, e toca a sua casa, e a sua pessoa, resultando na sua conversão. Também os pastores (Lc 2,8-20) foram “a Belém ver o que aconteceu” e “depois de terem visto, começaram a divulgar” o que “o Senhor [lhes] deu a conhecer”, “glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido”. Este é outro caso em que Lucas claramente pretende indicar o dinamismo de uma “visão” profunda de contacto e relação: aquela que leva ao conhecimento interior, que despoleta a conversão verdadeira à fé. Tudo isto em contraste evidente com os acontecimentos da manhã de Páscoa (Lc 24,1-12), primeiro com as mulheres e depois com Pedro que “viu apenas os lençois”: não poderam crer até que a manifestação radical do Ressuscitado se faz presente (Lc 24, 36-49): “Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu!” É a confirmação do dinamismo da “visão”, o movimento da densificação da fé confirmada na experiência de Jesus, já atestada na revelação aos discípulos em Emaús (Lc 24,13-35).

Esta densidade dada no capítulo 24 pelos acontecimentos do Domingo de Páscoa (da Ressurreição à Ascensão), com o qual termina o Evangelho, faz também realçar o valor do “Hoje” com um pendor salvífico profundo, derivado da hermenêutica pascal sobre o Mistério de Jesus.

Mais, a narrativa deste relato assume as características de um micro-evangelho. Esse evangelho de Emaús desenvolve-se à volta de uma questão. Um percurso que foi de Jerusalém a Emaús, após a viragem que trouxe aquele Viandante, tornou-se de Emaús para Jerusalém. Deu-se uma viragem na questão aparente de Jesus não ter cumprido as suas esperanças. Afinal, a grande questão era os discípulos não “verem” Jesus: não O terem descoberto a não ser passando por esse itinerário da fé, um “percurso-evangelho” – Caminho, Palavra, Casa, Mesa – o processo que leva do “ver” ao crer. Portanto, há uma abertura pessoal que sustenta a visão, há um ver que só o crer permite. “Kratéo” – “impedir” – descreve o endurecimento interior dos discípulos e que, geralmente atribuído aos opositores, mostra aqui a descrença e a confusão que habita os discípulos. “Guinósko” vai exprimir esse “reconhecer” fruto da relação, da experiência de Jesus. No fundo, os dois verbos falam-nos sobre o efeito Jesus em cada personagem, de rejeição ou de adesão.

Contudo, em Emaús ainda não nos é apresentado como se passa do “crer” ao “ver”, apenas e sim se comunica a mistagogia do mistério Caminho-Palavra-Casa-Mesa. No Evangelho vemos, de facto, que o caminho é o lugar onde se descobre Jesus, pois que o caminho nos obriga a deixar tudo para trás para vivermos uma experiência de fé como Abraão, que deixa a terra e os parentes. A Bíblia, como as grandes literaturas, é um conjunto de livros de “caminho”: a economia do caminho obriga o caminhante a expor-se. Também Jesus não fundou uma escola física, mas um caminho de vida e agora isso é fundamental para quem quer ser seu discípulo.

Este episódio ilustra retoma igualmente a questão da Palavra: o leitor começa por ser no início do relato acompanhado por Jesus que lhe explica a Palavra de Deus sobre Si próprio. É Cristo que explica Cristo e, por isso, lemos as Escrituras cristologicamente. Curiosamente, é aí que o leitor é deixado sem essas “explicações”, ficando a saber menos que aqueles discípulos: também, o leitor tem de se tornar discípulo para saber. Só a partir daqui é que Jesus se manifestará, como faz mais adiante, cumprindo o seu “preceder-vos-ei a caminho da Galileia”. O entrar na casa passa a deixar Jesus como protagonista: é um momento de intimidade, em que Jesus forasteiro entra na Casa, elemento que antecede o momento de viragem: a Mesa. Este é para Lucas o lugar decisivo para conhecer Jesus, para resolver o problema do crer, para aquele que é discípulo.

A arquitectura deste capítulo tem uma teologia muito forte, o encontro com o Ressuscitado dá-se antes que o Dia de Páscoa termine, é o último gesto do Ressuscitado: os olhos abertos pela fé.

Outro ponto, que podemos referir é o valor assumido por Nazaré (Lc 4,16-30 como lugar importante para a apresentação da Pessoa de Jesus, em contraste com Mateus, que ao se preocupar com a questão davídica, prefere Belém. Nazaré é, portanto, o lugar da “Unção”, do início da vida pública de Jesus. É a passagem onde se apresentam muitas questões que serão desenvolvidas ao longo da vida de Jesus, e onde se prenuncia o seu desfecho, assumindo particular função proléptica no Evangelho: após a leitura, fixando-se todos os olhos nele, o próprio Jesus afirma-se como Ungido pela realização da Palavra e apela para si todo o relevo messiânico do título de Profeta. De facto, no texto lucano, tanto a multidão como os que eram curados, admitiam Jesus como um Profeta. Introduzindo a questão de Jesus ser “mais um profeta” ou ser o Profeta escatológico, o Novo Moisés, vemos que Jesus assume como seu o destino que levaram os profetas, pois também Ele, trazendo a Palavra de Deus, compreende estar à espera da mesma rejeição. Contudo, não dizendo Ele traz a evidência do Novo Moisés, mas sem precisar de Aarão a seu lado, pois Ele próprio é “poderoso em obras e palavras”.

Em Lucas há uma forte introdução de elementos à volta da Mesa. Há uma teologia “alimentar” construída com base no desempenho das circunstâncias do “comer”. Este tema é retomado pelo Apocalipse, sem esquecer as referências do Antigo Testamento, Deuteronómio e Números. De facto, os Judeus ainda hoje têm um forte vínculo litúrgico à mesa e este é um laço essencial entre eles. Há uma particularmente forte relação entre religião e a dimensão da “mesa” que era tomada como fundamental na família e daí ao tecido social. O grande impacto do Templo na religião, tornara-o a fonte mais concreta da forma de estruturar toda a vida dos hebreus, de especial correspondência entre os “ritos oficiais” e os preceitos à “mesa” e na vida diária. Daí que os saduceus tivessem enorme influência. Os essênios, como dissidentes, tentavam particularmente reconstruir a visão judaica noutros quadrantes mais exigentes, mas a maior parte dos seus símbolos está também nas leis da “mesa”. Os fariseus, sendo os leigos, que “separados” se esforçavam por viver justamente, mimetizavam exponencialmente à mesa essa ritualidade própria do Templo, estruturando assim a vida e a forma de louvor em sinal de fidelidade.

Em Lucas vai ganhar esta dimensão um relevo apropriado pois só ele coloca três particulares passagens em que Jesus foi convidado à “mesa” (Lc 7,36.11,37.14,1). Isto porque para Lucas eram importantes elementos de revelação de Pessoa de Jesus, e que marcam a sua cristologia e a forma como a compreendemos: é o caso de Zaqueu, já referido, cuja conversão se dá na “mesa”.

Na passagem de Lc 14,7-14, Jesus torna-se como um mestre de etiqueta , e pelo banquete explica o Reino. Fazer isto que Jesus propõem é visto com olhos de espanto a nós, pois nos parece perverter o significado das nossas relações e das razões porque alguém dá um banquete. Ao contrário do que sucedia com João Baptista ao se marginalizar com outros alimentos alternativos Jesus come e bebe, mas altera a concepção organizativa dando-lhe a sinaléctica do Reino, o que era uma autêntica revolução, imagem da revolução operada com a instauração do Reino da Graça, como percebemos nas origens humildades dos convidados e na escolha do lugar mais recatado.

Esta novidade é também certamente um factor da morte de Jesus: a proximidade e a relação de misericórdia. Todos esperavam a misericórdia de Deus profetizada pelos profetas, mas nunca nesta forma. A experiência medicinal de uma proximidade aparentemente perigosa, pelo risco de contágio, manifestará uma viragem fundamental na visão da acção misericordiosa de Deus. A inclusão dessa relação na mesa era também contrastante com o significado exclusivista que tinha uma refeição: não eram abertas a não ser àqueles com quem se tinha intimidade. Para Jesus a Mesa há-de ser o lugar da inclusividade, como lugar da acção de proximidade e da Salvação de Deus.

A passagem da “mesa” onde surge a mulher (Lc 7,36) contém também especial luz sobre o seu significado: Jesus aceita um convite pois considera-o verdadeiro à vista da rapidez com que o aceita. Mas face à proximidade da pecadora o anfitrião acaba por julgar mal Jesus, duvidando do que todos achavam dele, ao considerá-lo profeta. Mas Jesus é que assume o comando das informações principais, como permite Lucas (pois Ele é Quem sabe) comparando a verdadeira hospedagem que afinal recebeu Jesus: não a do fariseu, mas a da mulher que o amou verdadeiramente como provou ao dar-lhe toda a proximidade possível, quase eroticamente. Fica a pergunta de quem foi Jesus hóspede? A resposta é de quem O acolhe verdadeiramente: o pecador arrependido e para eles é que assim compreendemos que vem Jesus. Em Lucas, o leitor tem de se assumir como pecador: “Porque muito amou, muito se-lhe perdoa”. Não é a desculpabilização como se nenhum mal fora feito, é a questão do perdão, do amor: “a quem mais se perdoou foi o que amou mais”. Esta passagem serve ainda para fazer sobressair outro aspecto do Evangelho lucano: “Quem é este que perdoa pecados?” Este é um evangelho de perguntas. De facto,isto permite a Jesus sair “reforçado” de um banquete que correu mal, pois “perdoar os pecados” era efectivamente prerrogativa divina.

A densidade da cristologia lucana está contudo mais condensada nos seus primeiros dois capítulos, onde é vigorosa. No seu desenvolvimento passa a ser uma cristologia mais tímida e mais questionada.

Assim é no chamado “evangelho da infância” que se pode extrair muito do essencial da narrativa. Um dado concreto é o dos “cânticos” lucanos como o de Maria (Lc 46-55) que surge recolhendo várias referências do Antigo Testamento formando-lhe um autêntico subtexto de compreensão: é a fé de Israel que lhe serve de dicionário espiritual e ideológico. É fornecendo as palavras eulógicas usadas nessa espiritualidade bíblica e tradicional que se sugere ao leitor o facto das novas circunstâncias, da nova performance, dos eventos de novidade serem a resposta às antigas promessas. É a concentração num indivíduo, como ponto de chegada, que expressa toda a expectativa messiânica do Povo, face ao advento de Jesus.

A organização do “Magnificat” apresenta-nos concretamente que se deseja uma vasta abrangência face às realidades do Povo de Israel, ao serem explorados três três campos semânticos: o religioso (Lc 1,46-50) com o recurso aos titulos consagrados ao Senhor Deus; o socio-político (1,50-53) onde temos o contraste entre soberbos e humildes; e o étnico (1,54-56) onde Israel contrasta com a descendência de Abraão, muito mais abrangente.


Percebemos uma linguagem heterogénea, mas colocada num só tecido, que condensa toda uma densidade literária, mostrando como todo fica diferente depois do “Magnificat”. É uma verdadeira reviravolta na acção de Deus e daquele Mundo que parecia estável: de ricos e poderosos no comando, de soberba étnica. A manifestação de Deus dá-se tornando diferente o mundo conhecido. Portanto, o “Magnificat” antecipa a função do próprio evangelho que é proclamar Jesus como a mutação desejada por Deus na História dos homens. O “Magnificat” tem essa densidade escatológica da plenitude em Cristo, de Deus como realidade última da História, que a rescreve totalmente com o dom da sua Salvação. É uma nova perspectiva, trancendente e triangular, onde Deus participa da História, revolvendo os intervenientes históricos tradicionais. As palavras do “Magnificat” ficam a soar ao longo do evangelho pois são chaves que ele vai recuperando e desenvolvendo.

Lucas introduz nesses primeiros capítulos o método da síncrise que aproveita em toda a Obra Lucana. Nesta parte do evnagelho, aproxima João e Jesus e, por isso, surge o texto do Benedictus (Lc 1,68-79). Desde o primeiro anúncio, que foi de João, as duas personagens irão crescendo até que se encontrem no terceiro capítulo. Há, efectivamente, uma grande densidade proléptica, como vemos no recurso do tempo aoristo grego, fazendo sobressair uma realização consumada, algo que já começou na História, mesmo que ainda não esteja realizado, concluído. As duas partes do Benedictus mostram primeiro (1,68-75) a densidade que a Salvação ganha na História e depois (1,76-79) o significado histórico de João, aquele que prepara o caminho à visitação messiânica. É um grupo poético importante (talvez até pré-cristão) que manifesta o reconhecimento da chegada do tempo da Salvação. Esta salvação em Lucas, mais que os sinais de cura, é o perdão dos pecados e a sua instauração. O termo “afesis” – o libertar, a remição – passa a ser usado por Jesus (como em Lc 7,48) quando nunca surge no Antigo Testamento. De realçar a ideia de Paz bem presente aqui e que era especial pregorrativa sacerdotal, segundo os Números, o que manifesta a implicação sacerdotal de Jesus na benção da paz. Sem a reconciliação não há paz em Deus e a sua intervenção é necessária: é a mesma viragem que Deus introduz na História, e que une a Paz à experiência da Salvação.


Outro cântico importante é aquele colocado junto ao Nascimento de Jesus na voz dos Anjos (Lc 2,14). É mais breve e tem origem na perícope do versículo 10: “euangelizomai” transmite plenamente a ideia teológica de anúncio e “boa nova”. Jesus é aqui chamado Salvador pela única vez. É toda a densidade captada pelo leitor da atribuição de um título que pertencia ao Imperador a alguém ainda não mais do que um menino, pois está a acontecer a viragem causada pela irrupção de Deus na História. O recurso da palavra Hoje, de forma bem clara, manifesta a sua importância: a Salvação é de Hoje, pode-se “ver”, colocando nestes versículos à volta do Nascimento, uma plástica palpável pela “visão”. Tal como a Páscoa, todos os acontecimentos dão-se num só dia, um Hoje, o que concorre para o sentido proleptico destes primeiros capítulos face ao evangelho. Jesus é o “Cristo Senhor”: “Kyrios”, porque é uma citação implícita de Isaías (1,3) em relação à manjedoura. No “Magnificat” (Lc 1,47), Deus é o “meu Salvador”. Depois, Zacarias proclama-o como “Corno da Salvação” (Lc 1,69). Mas aqui (Lc 2,11), Jesus é aclamado Salvador pelas palavras de um actor “divino”, com que Lucas sabe transmitir essa credibilidade transcendente.

De facto, Lucas coloca no seu texto uma dimensão extraordinária face aos outros evangelhos. Também Simeão no Templo (Lc 2,29-32) proclama a “Paz” num “Agora”, porque os seus “olhos viram a Salvação”, “Luz para as nações e glória de Israel”, reforçando as anotações teológicas já apresentadas. Torna-se claro observar que todos os “cantores” são personagens que “viram” e cantaram como Simeão.

A citação mais longa de Isaías, nos evangelhos está em Lucas (Lc 3,4-6): “toda a carne verá a salvação de Deus”. Este é, também, um evangelho da Salvação, colocando bem no centro a Pessoa de Jesus. O Episódio da viúva de Naim (Lc 7,16) declara explicitamente, “no meio de nós apareceu um grande profeta”, com o testemunho de todos os sinais de curas e ressurreições que acompanham Jesus, requerendo o título de “Benfeitor Divino”.

Na “vida pública” apresentada por Lucas há uma cristologia que se vai formando e corrigindo. Profeta é um título de Jesus mas não é suficiente para defini-lo completamente. Passa uma galeria de personagens que precisam de curas “de saúde”. Estão em função da principal personagem que é Jesus, caracterizando o seu ministério terreno de Jesus, esclarecendo um aspecto sobre Ele. Já nos Actos dos Apóstolos serão outros elementos que a desempenhar essa função retórica, como forma de persuasão. Assim o importante da revelação de Jesus não são as curas operadas, que até desaparecem no livro dos Actos, mas têm um função retórica de persuasão para levar os corações a aceitar o mais difícil: não são as curas, pois conheciam-se outros curandeiros, mas que Jesus “perdoa os pecados”. Esse elemento é que é a grande dificuldade à fé, mas é fundamental: “quem é este que perdoa os pecados?” A relação entre o Evangelho e os Actos na Obra Lucana é tornar claro de que é Jesus que salva a Humanidade na sua estrutura profunda, num novo patamar do Humano.

Há, realmente, uma contraposição simbólica em Lucas. A parábola do cego que guia outro (Lc 6,39-40) indica concretamente que “o discípulo não está acima do mestre, mas o discípulo bem formado será como o mestre”. Adiante concretiza(Lc 24,46-47) que estando o Povo fechado por andar convencido de si mesmo, Jesus acolheu aqueles que procuravam perdão: somos chamados a identificar-nos com o pecador, tal como o Messias Jesus foi morto como pecador: paradoxalmente, salva-nos, tornando-se um de nós. “Havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém”. É esta a Salvação de Jesus, a conversão para o perdão dos pecados. Com o exemplo de Pedro, percebemos que a conversão profunda se deu com a identificação de si próprio como pecador: é quando não colocamos a sede da santidade em nós, quando nos mostramos carentes de perdão, aí começamos a aventura de sermos discípulos. A focalização na figura do pecador serve de testemunho para o caminho que Lucas propõe ao leitor.

Faltam ainda outros dois elementos essenciais em Lucas, pelo seu contributo teológico: o Templo e a Casa.

O templo dos cristãos de hoje é mais uma Casa e uma Assembleia: “ekklesia” é um paradigma diferente face aos Judeus. O Templo para os hebreus era o lugar da habitação divina, o sinal visível de Deus invisível, era o ícone da santidade divina e da santidade do Povo eleito na Aliança. Esta santidade era o ideal do judaísmo: ser santo como o Templo. Por esta razão, surgiram todas aquelas minudências nas regras, tudo para esclarecer no quotidiano o que é puro e impuro, rejeitando e procurando afastar-se de tudo o que é híbrido.

O termo santidade derivava etimologicamente do conceito de “separação”. A santidade requeria toda uma integridade física, fisiológica e espiritual: mas nunca somente a última. Para entrar no Templo e ter o corpo como receptáculo perfeito para a presença de Deus, só podia ser se se encontrava na mais profunda inexistência de poluição até das próprias secreções. A entrada no Templo era restringida aos santos, àqueles que se mantinham puros. Portanto, um das caracteristicas do Templo era ser símbolo pragmático da identidade nacional. Tal como imitava a sociedade judaica, o Templo era hierárquico e político. Todo o espaço era repartido em função do culto mas também dos limites da organização social. No fundo, estava marcado por exclusividades e discriminações, imagem perfeita da concepção social.

O Evangelho de Lucas termina no Templo, os Actos retomam essa ideia afirmando que os discípulos, além da comunhão fraterna, frequentavam o Templo. Só depois, quando Paulo é preso e as “portas do templo se fecham” (Act 21,30) é que se dá a distinção os cristãos face ao Templo numa ruptura definitiva. Em Lucas o Templo é descrito de forma polissémica: é o lugar do sacrifício e dos cultos; é o ponto fulcral da peregrinação, do ensino, do magistério do Sinédrio; é o lugar concreto da residência de Deus entre o seu Povo. Logicamente, o Templo é também importante na identidade de Jesus. Mas porquê, se para Lucas já se encontrava destruído? Porque foi referido e bem vinculado pelo Próprio Jesus a valorização do Templo, como metáfora da identidade de Jesus, “Presença de Deus”, e é um dos elementos fundamentais na teologia deste evangelho. O Templo traz assim a confirmação messiânica de Jesus: é lá que se desvela a essa sua identidade como Messias, onde o Jesus anunciou o seu lugar predominante.

Mas se a salvação é identificada com Jesus, então o Templo torna-se “ambivalente”: se é aceite como estratégia para a identificação de Jesus, segue-se igualmente num sentido de desmitificação do Templo face à plena identificação de Jesus como presença de Deus extraordinária (fora da especificidade do Templo). Por isso se perdoam os pecados fora do Templo, quando essa missão era do Templo. Paradoxalmente, o Templo é também arrasado face a Jesus, pois há uma identificação da Santidade de Jesus que se distingue do Templo: Ele não é nem saduceu, nem jamais esteve próximo dos Santos dos Santos. Daí ser necessário aparecer Jesus menino entre os Doutores da Lei. Há um luto primeiro da família de Jesus porque O perderam, mas para Jesus é o início da História de um outro encontro, uma autonomia essencial para a descoberta e reivindicação da sua identidade. Os doutores “admirados” contribuem para a construção simbólica de uma alternativa ao Templo, que historicamente acontece depois. O templo cristão é Jesus mesmo e depois dele são os próprios cristãos, que comem do seu Corpo, o lugar da habitação do seu Espírito.

Jesus que cumpriu o seu Messianismo fora do Templo, esgotou-o de qualquer relevância: o cristianismo constrói-se no Templo, mas leva a religião para fora do Templo e dos próprios moldes da compreensão do que é religião, indo do “sagrado” ao doméstico. A anunciação a Zacarias ainda se dá no Templo, mas o Nascimento do Messias já se dá numa casa: é o profano e o mundano face ao Templo. Lucas constrói uma tensão de espacialidades, onde coloca as que se fecham e se esvaziam, e as que se abrem como aquela casa que recebe a presença de Deus e passa a templo: Jesus não é aceite no Templo, mas é aceite nas casas, e o cristianismo passa a ser das casas. Este é mais um “renversement” da acção de Deus na História. Este elemento introduz a vitória da casa como lugar da Salvação e é um ponto claro da cristologia de Lucas. Vemos isso na densidade dos acontecimentos dentro de casas no todo da Obra Lucana: É a casa de Pedro, de Zaqueu, todas as casas da Galileia e da Judeia onde é recebido o Hóspede: a Casa tornou-se o lugar do acolhimento da Salvação.


Mais se poderia dizer sobre todos os aspectos que compõem este Evangelho segundo Lucas, mas ficaram aqui alguns traços da riqueza que uma narrativa desta envergadura transporta na expectativa de tocar um leitor.

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