quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Análise Narrativa 7

A narrativa de São Lucas

O Evangelho de São Lucas é certamente, dos três sinópticos, o mais tardio como é também o mais longo. São Lucas faz anteceder a sua narrativa de um ‘Prólogo’ com uma dedicatória, algo que só aparece neste evangelho. Tal como São Mateus, também São Lucas inclui um ‘relato da infância’ de Jesus (1:5-2:52).
É precisamente este ‘relato da infância’ (também chamado ‘evangelho da infância’) que é específico em São Lucas não pela inclusão deste na narrativa, pois como já se disse também São Mateus inclui um relato idêntico, mas porque nele está já, juntamente com o capítulo 3 embora apenas consideremos a ‘secção da infância’, definido em termos ‘maximalistas’, como se expressa Tolentino Mendonça, as marcas fundamentais que caracterizam a pessoa de Jesus na sua condição de ‘Filho de Deus’ [1:35] e como ‘Messias Salvador’ [2:11] (cfr., MENDONÇA, José Tolentino, A construção de Jesus. Uma leitura narrativa de Lc 7, 36-50, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p.240).
Na verdade, no ‘relato da infância’ está já lançado o tema central do evangelho lucano – a Salvação. O tema da salvação é o motivo principal que preside à construção da pessoa de Jesus na narrativa de São Lucas (cfr., ibidem, p.209). Tal facto pode ser atestado quando percebemos que é nos três primeiros capítulos que está concentrado o uso de substantivos ligados à salvação (‘soter’ [salvador], ‘soteria’ [salvação] e ‘soterion’ [salvação]) embora o verbo ‘salvar’ esteja ausente (cfr., ibidem, p.210). Não obstante, o tema da ‘sotería’ ocupa todo a narrativa lucana, mas na I Parte do evangelho de São Lucas define-se a natureza e os agentes dessa salvação, enquanto que na II Parte, São Lucas considera a acção salvadora de Jesus (cfr., ibidem, p.209). Assim, todo o evangelho perfaz uma unidade narrativa em torno do tema central que é a salvação. Ao mesmo tempo no ‘evangelho da infância’ temos uma introdução a alguns dos principais temas do evangelho, isto é, temos um ‘guia proléptico’ da identidade de Jesus que serve também como ‘modelo correctivo’ a partir do qual se pode aferir o que vai sendo dito sobre a pessoa de Jesus (cfr., ibidem, p.211).
Para melhor se tornar manifesto o que se tem afirmado importa considerar o tema da salvação no ‘evangelho da infância’, ou seja, como e em que situações ela está presente. Assim, importa relevar para o efeito os cânticos evangélicos de Maria [‘Magnificat’] e de Zacarias [‘Benedictus’], o Nascimento de Jesus e o anúncio aos pastores, bem como o cântico de Simeão [‘Nunc Dimittis’], ainda que a primeira referência à salvação, de modo implícito, aconteça em Lc 1, 31 quando o anjo Gabriel diz o nome que há-de pôr a Jesus, mesmo que aqui não esteja explicitado o conteúdo do significado do nome ‘Jesus’ (‘o que salvará o povo dos pecados’) como está em São Mateus [1:21], todavia no desenvolvimento da narrativa lucana tal fica expresso (cfr., ibidem, p.211).
Não obstante este passo, aquele que pela primeira vez de modo explícito se encontra uma referência à salvação, encontra-se no ‘Magnificat’ onde Maria descreve Deus como seu salvador [1:47]. Ainda que não existe uma passagem clara do AT para atestar a afirmação de Maria – ‘o meu espírito exulta em Deus meu salvador’ – ela está de acordo com a teologia do AT em vários passos (cfr., ibidem, p.212). Ora, este ‘Deus Salvador’ é o Deus da ‘reviravolta’ como está dito e atestado nos vv. 46-55, pois Ele ‘derruba’ uns e ‘exalta’ outros (cfr., ibidem, p.211), mas a característica deste Deus não é apenas de repor a justiça, mas a da misericórdia, pois Ele olha para a condição humilde da Sua serva [v.48] e vem em auxílio de Israel [v.54] porque lembrad’O da Sua misericórdia [v.54]. O hino de Maria não diz um modo estipulado de se referir a Deus, antes diz o que Maria pensa do que Deus oferece ao Seu povo em sintonia com as promessas feitas (cfr., ibidem, p.212), isto é, a Sua Salvação, o ‘Messias Salvador’.
O outro hino no qual o tema da salvação aparece é o cântico de Zacarias [‘Benedictus’] que combina uma expressão louvor, de acção de graças com uma profecia (cfr., ibidem, p.212), pois na primeira parte do cântico [vv.66-75] Zacarias canta a acção final (escatológica) de Deus (‘Deus visitou o Seu povo’), o envio do Messias (‘nos deu um Salvador poderoso), ao mesmo tempo que revela que tal envio já aconteceu, tal como prometido, na concepção de Jesus [1: 41-45], que é Senhor [‘kyriós’] (cfr., ibidem, p.212). A segunda parte do cântico de Zacarias de tom profético [vv.76-79], desvela a missão de João, a qual retoma a promessa do anjo na 2ª anunciação em 1: 41-47 (cfr., ibidem, p.212), de que João será grande e irá à frente do Senhor, mas João está subordinado, como precursor, ao Messias (cfr., ibidem, p.212).
‘A visita de Deus ao Seu povo’ com que Zacarias inicia o cântico tem um sentido proléptico (de antecipação), porque está ligada a esta experiência presente, a certeza de um futuro (cfr., ibidem, p.212), uma vez que no v.69 fica expresso que esta visita de Deus ao seu povo que o redime concretiza-se na linha do cumprimento da promessa feita à casa davídica (cfr., ibidem, p.213), que é actual e sempre actuante em virtude também dos efeitos resultante da vinda do Messias (cfr., ibidem, p.213). Na segunda parte vv.76-79, Zacarias volta-se para João que é descrito como ‘profeta do Altíssimo’ que tem o dever de preparar os Seus caminhos, isto é, os caminhos do Messias, ou seja, os corações estes cheguem ao conhecimento da Sua ‘sotería’ [v.77] que consiste na remissão dos pecados [v.77) (cfr., ibidem, p.213). Ora, a experiência da salvação de Deus fica relacionada com o perdão dos pecados, fazendo deste a condição da primeira (cfr., ibidem, p.213).
Nesta segunda parte do cântico fica devidamente expresso a subordinação de João a Jesus, isto é, do ‘profeta’ ao ‘Messias. Por isso, é que a relação entre Jesus e João tem, segundo Tolentino Mendonça, um lugar-chave no ‘evangelho da infância’, uma vez que ela é apresentada em forma de síncrise (instrumento de caracterização das personagens que por meio de uma comparação visa estabelecer entre eles diferenças os semelhanças), comparação e contraste (cfr., ibidem, p.186). Os dois relatos de ‘anunciação’ e dos ‘dois nascimentos’ são lidos nesta relação “síncrisica”, comparativa e contrastiva, pois o mesmo anjo Gabriel aparece a Zacarias [1: 5-25) e a Maria [1:26-38], mas enquanto Zacarias duvida da palavra do anjo [1:20], Maria acredita [1:38, 45]. Isabel supera a sua esterilidade [1:57], e Maria sendo virgem dá à luz [2:7]. Finalmente João é ‘profeta’ [1:76] e Jesus o ‘Messias de Deus’ [1:35] (cfr., ibidem, p.186). Por isso, a João cabe o papel de comunicar o conhecimento da salvação de Deus que consiste no perdão dos pecados (cfr., ibidem, p.214). O cântico de Zacarias põe a tónica na salvação e ao mesmo tempo termina com uma referência ao motivo da salvação, isto é, ‘o caminho da paz’ [v.79], pois a paz faz parte essencial da bênção sacerdotal [Num 6:26] porque ela era expressão da epifania de Deus (cfr., ibidem, p.215], por isso é normal que Zacarias como sacerdote que era termine o seu cântico com uma referência à paz (cfr., ibidem, p.215), que não é apenas tranquilidade, mas é antes perfeição e felicidade, estando relacionada com o perdão dos pecados e a justiça, pois não há paz com Deus caso não haja reconciliação (cfr., ibidem, p.215).
É esta paz que em São Lucas está relacionada com a salvação que está presente não só no cântico de Zacarias (‘Bendictus’), mas também na narração do nascimento de Jesus, quer no anúncio aos pastores do nascimento do Salvador (‘soter’) – «O anjo disse-lhes: “Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» [2:10-12]; quer por meio do breve cântico do anjo e da multidão celeste – ‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado’ [2:14] (cfr., ibidem, p.215). Neste anúncio aos pastores São Lucas usa o substantivo ‘soter’ de forma explícita, e pela única vez, a Jesus, coisa que nem Marcos nem Mateus fazem alguma vez (cfr., ibidem, p.215). Ora, se em São Lucas 1:47 (‘Magnificat) o substantivo ‘soter’ diz justamente o Deus que salva, agora em 2:11 é o próprio Jesus que é tido como o Salvador, e é esta alegria que o será para todo o povo (cfr., ibidem, p.215).
Temos, finalmente, também no cântico do velho Simeão, ainda no ‘evangelho da infância’, o regresso ao tema da paz e da salvação [2:29-30], sendo que logo no versículo 29 temos assinalada a actualidade do tempo da salvação e por isso o servo de Deus Simeão pode ir ‘em paz’, porque os seus olhos viram que a plano de Deus chegou à sua plenitude (cfr., ibidem, p.216), ao seu cumprimento, é pois nisto que consiste a paz, isto é, em ver a Salvação de Deus plenificada, pleromatizada. Assim, nas palavras de Tolentino Mendonça: «O que previamente foi visto e reconhecido por Simeão, tornar-se-á uma experiência universal» (ibidem, p.216) por meio da acção de Jesus, porque: «O Evangelho mostra que a salvação chega ao homem através da actividade de Jesus, apresentada como um programa messiânico. Dessa forma todo o seu ministério constitui um acontecimento escatológico no sentido estrito do termo: “os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciado o evangelho”[7, 22]» (ibidem, p.216).
Em suma, aquilo para que o ‘evangelho da infância’ abre como ‘guia proléptico’, no que diz respeito à pessoa e missão de Jesus, ‘Messias Salvador’, torna-se agora, no Seu ministério acontecimento de salvação em acto.

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