terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Elementos Característicos dos Evangelhos Sinópticos

Aluno: Paulo Pires.

I. Estrutura

II. Linguagem

III. Cristologia

IV. Eclesiologia

S. Marcos

I.

Quanto à sua estrutura, é possível encontrar diversas perspectivas, de acordo com os diversos autores. Assim, recolhemos dois testemunhos.

Um primeiro[1] define-o em três partes (I: 1, 14 – 6, 13; II: 6, 14 – 10, 52; III: 11, 1 – 15, 47), às quais se acrescentam os Antecedentes (1, 1 – 12, 13), no início, e a Páscoa (16, 1-8) e o Apêndice (16, 9-20), no fim.

Já outro[2], tomando como ponto-chave a primeira frase do Evangelho (1, 1), que afirma ser um sumário-anúncio, diz que esta contém os dois temas que o Evangelho irá desenvolver e que marcarão igualmente duas divisões fundamentais da obra. De facto, são os títulos de Messias e de Filho de Deus, que surgem respectivamente em 8, 27-30 e 15, 39, que guiarão todo o desenvolvimento em cada uma das partes. Teríamos, enfim, uma primeira parte, dedicada ao messianismo, compreendida entre 1, 1 – 8, 30, e uma outra dedicada à filiação divina de Jesus, entre 8, 31 – 16, 8.

Sobre a estrutura deste Evangelho, vale a pena uma breve consideração sobre o chamado Apêndice (16, 9-20) ou conclusão canónica. Contemporaneamente, os exegetas não consideram como autêntica esta conclusão, admitindo uma redacção cerca de meio século posterior[3].

Para explicar a controversa conclusão, vários autores apresentam algumas hipóteses. Karl Hermann Schelkle afirma que é bem possível que a última página do livro se tenha danificado e perdido, bem como o texto original que nelas se encontrava, uma vez que são as páginas dos extremos que sofrem maior desgaste. Outros ainda, argumentam a inautenticidade da conclusão canónica mostrando que ela reúne passagens tomadas de outros Evangelhos:

Mt

Lc

Jo

Mc 16,9-10 =

8,2

20,1.11-18

Mc 16,11 =

24,9-11

Mc 16,12-13 =

24,13-35

Mc 16,14-18 =

28,19-20

24,36-43

20,19-23

Mc 16,15 =

28,18-20

Mc 16,19

24,50-51

(At 1,9)

Por fim, outros há que o mostram através de uma análise estatística. No Evangelho é possível encontrar uma proporção de dez conjunções καί para cem vocábulos, normalmente colocadas ao início das frases, revelando a predilecção de Marcos por esta forma de iniciar os períodos. Ora, a conclusão possui 167 vocábulos e apenas duas frases começadas por καί, razão pela qual Robert Morgenthaler afirmar que basta esta simples constatação para comprovar a inautenticidade da conclusão canónica[4].

II.

A questão da linguagem em Marcos está muito relacionada com o problema de saber até que ponto o evangelista escreveu, por seu próprio punho, ou quando é que este se limitou a transcrever materiais já existentes. Neste sentido, vale a pena referir um elemento da sua linguagem que está em conexão com esta problemática.

Os estudos de estatística lexical, levados a cabo por R. Morgenthaler, permitem concluir que as frases iniciadas pela conjunção καί fazem parte do próprio estilo do Evangelho de Marcos. E esta evidência permite ressaltar duas conclusões: 1) O evangelista tinha à sua disposição muitas tradições. Uma análise atenta permite definir cerca de noventa perícopes que, consideradas individualmente, não têm ligação com o contexto. 2) O autor manifesta, pois, o interesse em não abreviar nenhumas dos testemunhos relativos a Jesus. Por isso, não procurar introduzir formas elegantes de vinculação das mesmas, mas transmitir, o mais autenticamente possível, o conteúdo que tem disponível.

Quando passamos ao relato da Paixão, esta apresenta um aspecto bastante diferente do resto do Evangelho. É possível encontrar aí marcas de uma tradição muito antiga, relatando no presente histórico, com evidentes marcas teológicas do tipo apocalíptico. A isto juntam-se a presença de inúmeras duplicações, como na perícope da crucifixão:

A bebida

15,23

15,36

A crucifixão

15,24

15,25

Ao escarnecimentos

15,29s

15,31s

O grito de Jesus na cruz

15,34

15,37

Isto mostra claramente que, ao menos no caso da Paixão, Marcos tinha muitas fontes já escritas à sua disposição.

Enfim, sobre a linguagem marquina podemos afirmar que, nenhum outro Evangelho possui uma naturalidade e simplicidade que se possa comparar ao de Marcos. Este era um típico narrador oriental, que relatava sem fazer concessões a formulações elegantes e jogos de palavras para deliciar o ouvido, tendendo muito mais a dar à narração uma vivacidade pitoresca e plástica, para atingir a imaginação visual. Mais ainda, ao utilizar o presente histórico, ele envolve directamente o leitor na situação narrada[5].

III.

O autor Wili Marxen afirma que o evangelista Marcos “encontra-se entre Paulo e a tradição anónima, por um lado, e os evangelistas posteriores, por outro”[6]. É possível perceber que Marcos, num contexto em que se vivia uma expectativa da parusia mais apagada[7], se encontrasse diante de algumas necessidades: 1) Unificar o relato da Paixão e a fonte dos logia; 2) Aprofundar teologicamente o kerygma da Paixão, com base numa cristologia epifânica incoativa, introduzindo assim a instância (Paulina) do valor salvífico da morte de Jesus na cruz.

A intenção cristológica de Marcos é perceptível na tensão que se encontra entre esta e o projecto do Evangelho. É certo que ele esforçou-se por unificar diversos testemunhos e tradições, de forma a oferecer um retrato de Jesus segundo uma perspectiva histórica. Porém, este esforço não está isento de um perigo de apenas se centrar a atenção no Jesus histórico, sem o Κύριος crucificado e glorificado. Deste modo, percebemos que Marcos rompe com uma estrutura histórica bem detalhada, permitindo centrar a atenção para o Cristo crucificado e ressuscitado.

Um último aspecto da sua cristologia está relacionado com a dialéctica entre humanidade e divindade de Jesus. Tendo em conta a tensão anteriormente mencionada, é possível notar em Marcos uma dificuldade de oferecer uma imagem de Jesus unitária e madura, que concilie as dimensões humana e divina[8]. Junto a descrições de traços verdadeiramente humanos, encontramos indicações não menos claras da sua divindade. A imagem de Cristo encontra-se, portanto, ainda numa fase de aprofundamento inicial, onde se nota a tensão entre humano e divino, entre histórico e escatológico.

IV.

Percebemos facilmente que o Evangelho de Marcos não é um produto de escrivaninha, mas tem o seu fundamento na catequese da comunidade cristã. Na verdade, a linha cristológica está intimamente unida à afirmação eclesiológica. Assim, sendo, é possível encontrar dois níveis na actividade de Jesus, de acordo com Rudolf Schnackenburg: “A actividade de Jesus, com a ressonância que encontra no povo, mas também a doutrina que dela deriva para a comunidade cristã, o surgimento, a vida e a obra da Igreja”[9].

Neste sentido, este Evangelho tem uma característica particular, no sentido de que os milagres e exorcismos que descreve não têm um valor em si mesmo, mas um carácter funcional, isto é, servem para ilustrar o “ensinamento com autoridade” (Mc 1, 21-28) de Jesus. A actividade doutrinal do Jesus histórico chama a atençãopara o seu magistério permanente na Igreja[10]: A Jesus pertencem os discípulos nos quais a Igreja se anuncia. De facto, na expressão estereotipada “Jesus e os seus discípulos”, frequentemente repetida em Marcos, recorda-se “Jesus e a sua Igreja”. Na palavra da Igreja, está presente e vive a palavra de Jesus[11].

Outro elemento da eclesiologia marquina é o lugar de Pedro. A estatística confirma o seu importante papel, tendo em conta a frequência com que aparece nos textos evangélicos. Porém, em Marcos, esta adquire um significado especial. A tradição considerou Marcos como intérprete do Apóstolo Pedro, e S. Justino chega mesmo a considerar este Evangelho como as “Memórias de Pedro”. Isto não apenas revela que este Apóstolo foi uma importante fonte, mas evidencia igualmente que a posição e a mensagem de Pedro adquiriam uma relevância muito considerável para a comunidade cristã das origens.

Por fim, abordar apenas o tema do caminho. A grande viagem levada a cabo por Jesus da Galileia para Jerusalém, do baptismo para a cruz, não tem apenas um significado importante no desenvolvimento da imagem de Cristo, senão que é símbolo do caminho missionário e da trajectória de toda a Igreja no caminho que leva à cruz[12].

S. Mateus

I.

Quanto à estrutura, o Evangelho de Mateus apresenta um elemento novo e significativo relativamente ao Evangelho de Marcos. Trata-se, pois, da narração da infância de Jesus. Assim sendo, A. Läpple apresenta a estrutura do Evangelho do seguinte modo: Antecedentes, que recolhem os relatos da infância (1, 1 – 2, 23); Preparação da actividade pública de Jesus (3, 1 – 4, 11); I (4, 12 – 13, 58); II (14, 1 – 20, 34); III (21, 1 – 27, 66); A Páscoa (28, 1 – 28, 20).

Mas existem outras formas de divisão. Recolhemos uma outra possibilidade[13]. Teríamos, então: Introdução (1, 1 – 4, 22); Jesus Messias, poderoso em palavras e obras (4, 23 – 9, 35); Os discípulos enviados por Jesus para continuar a sua obra, e as distintas respostas dos homens (9, 36 – 12, 50); Jesus retira-se e centra-se cada vez mais nos discípulos (13, 1 – 17, 27); Ruptura com o judaísmo (18, 1 – 22, 45); Discurso de despedida, paixão e relatos pascais (23 – 28, 20).

II.

Se tanto Mateus como Lucas utilizam o Evangelho de Marcos como fonte, porém, eles não se limitam a copiá-lo. Neste sentido, no que toca agora a Mateus, é possível observarmos que este evangelista modifica claramente o texto de Marcos. Na verdade, Mateus muitas vezes elimina termos aramaicos do modelo de Marcos, como por exemplo, Mc 5, 41//Mt 9, 25; Mc 7, 11//Mt 15, 5). E acontece também que algumas passagens de estilo aramaizante de Marcos são convertidas em bom grego[14]. O mesmo acontece quando existem traços de sintaxe latina.

Também característico do estilo mateano é a sua técnica de composição. De facto, contrariamente a Marcos, que denotava pouca preocupação em ligar com elegância os diversos episódios disponíveis sobre a vida de Jesus, Mateus demonstra uma habilidade literária de organizar os materiais de forma temática. E disso são testemunho a várias perícopes com um fio condutor comum, como sejam os milagres ou os discursos.

A linguagem de Mateus demonstra ser plana, ditada pela discrição e por uma reserva. As descrições fantasiosas e plásticas estão ausentes: limita-se a registar factos, com calma e objectividade[15]. E predilecção do autor pelos discursos de Jesus, levam a considerar que talvez Mateus fosse mais reflexivo, tendendo mais para motivações racionais objectivas do que para experiências fortes ou arrebatadoras[16].

Pelo seu estilo e pela sua técnica de composição, Mateus deixa transparecer uma especial gosto pelo simbolismo numérico das vinculações, quer verbais quer temáticas. Para o autor, pois, as motivações objectivas são muito mais determinantes do que a exposição e destaque para os sentimentos.

Através destes pontos, vai surgindo a ideia de que por trás da figura de Mateus esteja a figura de um catequista que argumenta, informa e procura convencer; parece que o Evangelho representa um manual de uma escola teológica, talvez a de Antioquia, destinada em primeiro lugar à instrução da comunidade protocristã e só depois à acção missionária. Assim comenta W. Grundmann: “A explicação da doutrina por parte de Mateus não visa mais a conquista de discípulos, mas sim reforçar a condição de discípulo”[17].

III.

Quanto à cristologia de Mateus, é possível encontrarmos, de certa forma, um dualismo. Em primeiro, conseguimos notar que ao longo de todo o Evangelho existe um enfoque judeo-cristão que se dá da imagem de Cristo. Ou seja, é possível desvelar um fio condutor presente no ambiente judeo-cristão palestino, e que era o centro de toda a catequese primitiva: Jesus de Nazaré é o Messias da casa de David, prometido pelo A. T. A confirmar esta primeira tendência, temos o exemplo da genealogia de Jesus, com o seu simbolismo numérico que retoma as consoantes da palavra “DaViD”; as citações veterotestamentárias, que em Mateus são em número de setenta[18]; um respeito pela religiosidade judaica (cf. Mt 5, 23ss.; 23, 28).

Uma outra tendência que se encontra como que paralela a esta, é a coloração étnico-cristã da figura de Cristo. Uma vez que a última redacção do Evangelho terá acontecido por volta do ano 80[19], verifica-se que esta não suprimiu os elementos da tradição jedeo-cristã, mas inseriu uma moldura claramente étnico-cristã. Este “acrescento”, tem certamente origem nas circunstâncias históricas que se viveram entra a primeira redacção, cerca do ano 60, até ao ano 80.

Depois da queda de Jerusalém, no ano 70, os escassos resultados missionários aliados à consolidação do farisaísmo rabínico, determinaram a ruptura no diálogo com o judaísmo. Aquela atitude observada no sumo-sacerdote Caifás relativamente a Jesus, estender-se-á a grande parte do povo judeu. E, uma vez que o “Filho de David”, o “Messias” não foi acolhido pelo povo judeu, acompanhando a tendência das comunidades cristãs adquirirem cada vez mais traços étnico-cristãos, verificamos em Mateus um alargamento da sua cristologia para dimensões mais universalistas[20].

A comprovar esta última tendência temos Jesus, que é entendido como salvador de todos os povos. No Evangelho de Mateus, Jesus é o Messias que é enviado em primeiro ao povo da antiga aliança, mas que, ao mesmo tempo, funda o povo da nova aliança, a Igreja, no qual também os povos pagão se tornarão participantes da promessa (Mt 15, 24; 21, 43; 8, 11-12). Jesus aparece, enfim, como juiz escatológico do mundo (Mt 7, 21ss; 25, 11.37.44).

Encontramos igualmente, a confirmar a perspectiva universalista, várias referências ao longo do Evangelho alusivas à fé dos gentios. Depois da rejeição de Herodes e do sumo-sacerdote Caifás, símbolo da rejeição do povo eleito, são muitos os casos em que Jesus é aceite e acreditado por pagãos. Logo no princípio temos o episódio dos Magos (Mt 2, 11), o centurião de Cafarnaúm (Mt 8, 10) e o centurião romano (Mt 27, 54).

IV.

É neste Evangelho que encontramos uma relação muito estreita entre cristologia e eclesiologia. Não é gratuita a afirmação tradicional sobre Mateus de “Evangelho da Igreja”. Com o desenvolvimento da actividade missionária, e o crescimento em número das comunidades étnico-cristãs, percebe-se claramente que, a tendência para uma cristologia de cariz unilateralmente judeo-cristão é insustentável. Na verdade, a um desenvolvimento de uma cristologia universalista correspondeu também uma eclesiologia de cariz universal. E este dinamismo pode ser abordado segundo alguns pontos fundamentais.

O primeiro deles, refere-se a Israel e a sua ligação à história da salvação. Em Mateus, facilmente se fica impressionado com a radicalização da condenação de Israel, que aconteceu entre o tempo do Apóstolo Paulo e a última redacção do Evangelho. De facto, Paulo interpretava a abertura aos gentios como fundamentalmente uma participação dos dons e graças da promessa de Israel. Porém, no final do século I, a situação inverte-se, sendo o Evangelho expressão disso mesmo: os judeus perderam a sua vocação pelas suas graves culpas, devido à sua recusa obstinada. Portanto, não se trata já de um comum usufruto; ao invés, o lugar deixado por Israel é agora assumido pelos outros povos. E é neste sentido que surge a comunidade da Igreja: ela não um simples ramo que se enxerta na oliveira de Israel, já que a raiz (Israel) secou[21]. Esta crítica é muito clara da condenação determinada de Jesus ao farisaísmo (Mt 23, 13-16.23.25.27.29).

Outro ponto relaciona-se com a oposição Sinagoga-Igreja. A tensão gerada pela recusa de Jesus por parte de Israel, manifesta-se também numa circunstância em que Igreja e Sinagoga são descritas como entidades separadas e contrapostas[22]. É possível identificar um esforço por parte do evangelista por mostrar a exclusividade da culpa de Israel pela morte de Jesus (Mt 27, 15-26).

Esta oposição é ainda mais perceptível pelas inúmeras antíteses que Mateus realça ao longo do seu Evangelho: não a Jesus/sim a Jesus; sinagoga/Igreja; povo da antiga aliança/povo da nova aliança; doze tribos/doze Apóstolos; interpretação dos escribas/mensagem de Jesus.

Um terceiro ponto diz respeito ao verdadeiro Israel, entendido como a Igreja aberta aos gentios. Isto relaciona-se com um aspecto que também é possível encontrar no Evangelho, e que é a continuidade. Realmente, não obstante a recusa de Israel pela sua obstinação, os dons e promessas de Deus não são postos em causa; ao invés eles são transferidos para o “novo” Israel, isto é, a comunidade salvífica, a Igreja de Cristo. E esta não é uma Igreja reservada ao mundo judeo-cristão, mas a Igreja universal dos gentios, que se transforma no novo depositário das promessas de Jesus e, consequentemente, se mantêm vivas as promessas do A.T. Enfim, afirmamos que o universalismo ilimitado constitui uma dos pontos-chave da teologia de Mateus.

Um quarto e último ponto diz respeito a um outro tema sem o qual a eclesiologia mateana permanece incompleta: a figura de Pedro. Segundo alguns autores, uma vez que se pode considerar Mateus como o evangelista de Antioquia (A. Strobel), então o forte realce que esta dá à figura de Pedro pode revelar uma discussão eclodida na época protocristã entre Jerusalém e Antioquia. Esta tensão está presente, por exemplo em 1Cor 15, 5.7, com clara modificação em benefício de Pedro[23]. Assim sendo, parece que se tornou necessário reforçar a tradição de Pedro, de tal forma que o modo cuidados com que é delineada assemelha-se a uma apologia do Apóstolo[24]. Torna-se provável que o recurso à autoridade de Pedro pretendesse apaziguar tensões que se verificariam entre as comunidades judeo-cristãs palestinenses e as comunidades paulinas, assim como entras as comunidades cristãs de Jerusalém e de Antioquia.

S. Lucas

I.

Trata-se do Evangelho mais longo de entre os evangelhos sinópticos. À semelhança de Mateus, também este reúne um relato da infância de Jesus mas provenientes de tradições diferentes daquelas usadas por Mateus, e buscando, evidentemente, objectivos querigmáticos diferentes. Além disto, encontramos em Lucas uma outra particularidade, apenas presente neste Evangelho sinóptico: ele é precedido por um prefácio com uma dedicatória, tal como era usual nas obras do mundo antigo.

Assim, relativamente à estrutura, temos uma primeira hipótese que é a seguinte: Prefácio (1, 1-4); Antecedentes, que vão desde os relatos da infância até ao episódio das tentações (1, 5 – 4, 13); I (4, 14 – 9, 50); II (9, 51 – 19, 27); III (19, 28 – 23, 56); A Páscoa (24, 1-53).

II.

Quanto à sua linguagem e estilo, Lucas escreve num grego delicado e elegante, evitando, contudo, os elementos supérfluos. De facto, mesmo quando surge, período mais longos e literariamente mais elaborados, o fio condutor permanece sempre claro. É marcado igualmente por uma riqueza de vocabulário, de tal forma que ao longo do seu Evangelho, de entre os 1149 vocábulos apenas 373 se repetem[25]. Lucas evitava barbarismo e, sempre que encontrava latinismos ou hebraísmos no modelo de Marcos ou na fonte Q, traduzia-os. Uma outra característica que o distingue de Mateus é o uso frequente de verbos com prefixos, donde de conclui que o uso de verbos compostos são um traço típico de Lucas.

Lucas procurou igualmente estabelecer inúmeros vínculos entre frases por forma a estabelecer paralelos sugestivos[26]. Na sua forma de escrever é ainda possível reconhecer um traço especificamente humano, sobretudo porque é possível encontrar explicações psicológicas nas alusões discretas e nas justificações dispersas ao longo do seu Evangelho.

Ainda duas notas sobre esta abordagem mais literária. Em primeiro lugar, é possível afirmar que Lucas descreve acontecimentos que se passaram na Palestina, mas do ponto de vista ocidental[27]. Isto é claro sobretudo pelas vagas descrições geográficas, que tornam difícil identificar muitos locais com exactidão. Em segundo, Lucas escreve o seu Evangelho segundo a visão de um habitante da cidade[28]. Este aspecto torna-se perceptível na medida em que Lucas adaptou perícopes ligadas à vida rural de modo a relacionarem-se com a vida numa metrópole. É flagrante a substituição da típica casa de barro palestinense (Mc 2, 4) por uma casa citadina com telhas (Lc 5, 19). Uma razão válida que pode corroborar esta transformação, é certamente porque o seu destinatário – Teófilo – seria um habitante da cidade[29].

III.

Diante do perigo de uma cristologia desenraizada da história, sobretudo através dos hinos, os Evangelhos surgem como escritos que têm a marca da história como uma marca fundamental. Daí que se manifeste a preocupação de vincular a vida de Jesus ao seu fundamento nas história.

A única data que se nos oferece encontra-se em Lc 3, 1-2. Esta contextualização histórica do início da actividade pública de João Baptista é um ponto de partida para a consideração histórica da actividade do próprio Jesus.

Contudo, Lucas não pretende apenas oferecer elementos históricos que possam conferir mais densidade ao acontecimentos narrados, senão evidenciar Jesus como o centro da história. Deste modo, os estudiosos concluem que é precisamente a inserção da vida de Jesus no espaço histórico-salvífico o traço mais característico do terceiro Evangelho[30].

Esta inserção da vida de Jesus na história permite perceber o porquê da sua mensagem escatológica se encontrar concatenada com as promessas veterotestamentárias, projectando simultaneamente as futuras experiências da Igreja. Portanto, Jesus representa ao mesmo tempo, um ponto de chegada da história salvífica veterotestamentária, mas também o momento inicial da história da Igreja.

Outro elemento da cristologia lucana, é que no Evangelho temos muitos sinais óbvios da divindade de Jesus. Aquelas afirmações mais duras ou até equívocas da cristologia de Marcos aparecem-nos aqui mais suavizadas, revelando um certo apaziguamento das discussões que então fervilhavam; a divindade de Jesus já se tornara uma certeza da Igreja primitiva, do qual Lucas se faz testemunha[31].

Os sinais da divindade de Jesus surgem-nos, pois, em diversos episódios de forma mais directa. É o caso do testemunho angélico do nascimento do Menino, a clara consciência da filiação divina, aquando da peregrinação a Jerusalém com doze anos, e a aparição do anjo consolador no Monte das Oliveiras.

Porém, esta afirmação da divindade de Jesus não significa um afastamento dos homens. Antes pelo contrário, Jesus surge, no Evangelho lucano, como o Redentor, como a misericórdia de Deus que inclina sobre a miséria física e espiritual do homem. E neste sentido, é possível ademais, notar que na época da redacção deste Evangelho, as contendas entre os cristãos e os judeus já haviam serenado, de certo modo. E prova disto, é que, enquanto em Mateus ainda é possível encontrar duras críticas aos escribas e fariseus, em Lucas vemos Jesus a travar uma certa familiaridade com vários personagens destes partidos. Assim nos surgem as várias parábolas alusivas à misericórdia divina, que revela um carácter também definidor deste Evangelho, o universalismo, manifestado na misericórdia que se estende até aos pagãos.

Um último aspecto da cristologia de Lucas, está relacionado com algo de que já fizemos referência, ou seja, a humanidade de Jesus, que se insurge como gratificante e tangível[32]. À semelhança dos sinais da divindade de Jesus, também ao longo do Evangelho é possível encontrar sinais claros que manifestam a sua humanidade. Desde logo o pormenor das “faixas”, com que Jesus é envolvido ao nascer (Cf. Lc 2, 7); o seu suor no Monte das Oliveiras, descrito como espessas gotas de sangue (Cf. Lc 22, 44); a observação de que o Ressuscitado pode ser tocado, sendo, pois, possível atestar a sua presença efectiva (Cf. Lc 24, 39).

Estas marcas ajudam a perceber que este tema seria particularmente caro a Lucas, porque, sendo um convertido do paganismo, e estando os últimos decénios do século I ameaçados pelas tendências hostis ao corpo, como as dos gnósticos ou as do docetismo, esta afirmação da tangibilidade de Jesus eram uma afirmação da realidade da Encarnação do Filho de Deus.

IV.

Quando o Evangelho de Lucas foi redigido, como já o dissemos, as expectativas da parusia iminente já se encontravam amenizadas. A Igreja, pois, começava a entender-se cada vez mais como um evento na história, à medida que também foi surgindo a necessidade de resolver questões e problemas relacionados com Jesus de Nazaré.

Além disto, outra marca da eclesiologia da obra lucana, é a omnipresente consciência de que Jesus ressuscitado se faz presente na comunidade, sobretudo em contexto eucarístico, como nos demonstra claramente o relato dos discípulos de Emaús (Cf. Lc 24, 13-55). Aqui, neste episódio, muitos aspectos saltam à vista: Jesus é o companheiro de viagem, é o intérprete da Escritura, é o liturgo da celebração eucarística. A história da Igreja, para Lucas não consiste apenas, portanto, num guardar da memória de Jesus.

Sobre o tema do caminho, Lucas evidencia que aquele que podemos contemplar na vida de Jesus, é o modelo do caminho que a Igreja é chamada também a percorrer[33].

Finalmente, um último apontamento sobre a eclesiologia de Lucas. Ele, o evangelista de origem pagã, vai curiosamente aprofundar a matriz veterotestamentária da Igreja, dando a entender que é nesta que se há-de realizar a “reunião de Israel”. Segundo Gerhard Lohfink, é precisamente e evidenciação da continuidade entre a Israel e a Igreja que constitui o elemento lucano mais característico. Na verdade, a eclesiologia de Lucas distingue-se claramente da de Mateus. Enquanto para este a tónica é posto na ruptura que se estabelece entre a Sinagoga e a Igreja, em Lucas, pelo contrário, é sublinhada a continuidade entre o povo de Deus veterotestamentário e o novo povo de Deus.



[1] Cf. Läpple, Alfred – Bíblia: Interpretação atualizada e catequese, São Paulo: Edições Paulinas, 1978, vol. 4.

[2] Cf. Antonio Rodríguez Carmona. In Monasterio, R. A.; Carmona, A. R. – Evangelios siópticos y Hechos de los Apóstoles, Estella: Editorial Verbo Divino, 2009, pág. 109.

[3] Cf. Läpple, Alfred, pág. 43.

[4] Cf. Läpple, Alfred, pág 44.

[5] Cf. Läpple, Alfred, pág 51.

[6] Cf. Läpple, Alfred, pág 60-61.

[7] Cf. Läpple, Alfred, pág 61.

[8] Cf. Läpple, Alfred, pág 63.

[9] Cf. Läpple, Alfred, pág 70.

[10] Cf. Läpple, Alfred, pág 71.

[11] Cf. Läpple, Alfred, pág 71.

[12] Cf. Läpple, Alfred, pág 72.

[13] Cf. Rafael Aguirre Monasterio. In Monasterio; CarmonaEvangelios siópticos y Hechos de los Apóstoles, pág. 203-213.

[14] Cf. Läpple, Alfred, pág 112.

[15] Cf. Läpple, Alfred, pág 112.

[16] Cf. Läpple, Alfred, pág 112.

[17] Cf. Läpple, Alfred, pág 113.

[18] Cf. Läpple, Alfred, pág 118.

[19] Cf. Läpple, Alfred, pág 121.

[20] Cf. Läpple, Alfred, pág 122.

[21] Cf. Läpple, Alfred, pág. 125.

[22] Cf. Läpple, Alfred, pág. 1256

[23] Cf. Läpple, Alfred, pág. 129.

[24] Cf. Läpple, Alfred, pág. 129.

[25] Cf. Läpple, Alfred, pág. 148.

[26] Cf. Läpple, Alfred, pág. 149.

[27] Cf. Läpple, Alfred, pág. 149.

[28] Cf. Läpple, Alfred, pág. 149.

[29] Cf. Läpple, Alfred, pág. 150.

[30] Cf. Läpple, Alfred, pág. 152.

[31] Cf. Läpple, Alfred, pág. 152-153.

[32] Cf. Läpple, Alfred, pág. 154.

[33] Cf. Läpple, Alfred, pág. 157.

Sem comentários:

Enviar um comentário