quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Análise de algumas perícopes dos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas

Evangelho de Marcos
O final breve de Marcos

Mc 16, 1- 8
1Passado o sábado, Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para ir embalsamá-lo. 2De manhã, ao nascer do sol, muito cedo, no primeiro dia da semana, foram ao sepulcro. 3Diziam entre si: «Quem nos irá tirar a pedra da entrada do sepulcro?» 4Mas olharam e viram que a pedra tinha sido rolada para o lado; e era muito grande. 5Entrando no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram assustadas. 6Ele disse-lhes: «Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham depositado. 7Ide, pois, e dizei aos seus discípulos e a Pedro: ‘Ele precede-vos a caminho da Galileia; lá o vereis, como vos tinha dito’.» 8Saíram, fugindo do sepulcro, pois estavam a tremer e fora de si. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo.

O final breve do Evangelho de Marcos é um relato estranho no contexto dos Evangelhos porque não tem o relato das aparições do Ressuscitado. Como é possível um Evangelho sem falar da Ressurreição?
Em primeiro lugar é verdade que a Ressurreição de Jesus é anunciada com toda a clareza pelo jovem. Depois, em Marcos, a ressurreição é claramente proclamada: o corpo de Jesus não está onde tinha sido depositado.
A tese mais defendida não é que Marcos tenha escassez de relatos de Ressurreição, mas, pelo contrário, que o relato, e todo o Evangelho, está saturado de Ressurreição.

14O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o seu nome se tornara célebre; e dizia-se: «Este é João Baptista, que ressuscitou de entre os mortos e, por isso, manifesta-se nele o poder de fazer milagres»; 15outros diziam: «É Elias»; outros afirmavam: «É um profeta como um dos outros profetas.» 16Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: «É João, a quem eu degolei, que ressuscitou.» (Mc 6, 14-16)

Aqui temos algo importante: está-se a fazer um debate acerca de Jesus e da sua acção e, no meio desta inquietação, Herodes diz uma frase que parece fora do contexto. A conclusão é errada, mas o que levanta é certo: a acção e ministério de Jesus, no plano narrativo, levam-nos a uma linguagem da ressurreição. O vocabulário da ressurreição está aqui claramente presente. Mas veja-se também Mc 9, 26-27:

26Dando um grande grito e sacudindo-o violentamente, saiu. O jovem ficou como morto, a ponto de a maioria dizer que tinha morrido. 27Mas, tomando-o pela mão, Jesus levantou-o, e ele pôs-se de pé.

Um sentido que se pode encontrar para este final abrupto é que a Ressurreição valida a Cruz, é a validação definitiva e escatológica do gesto da Cruz, que é momento máximo da revelação de Jesus. Mesmo após a sua Ressurreição, o ressuscitado é o crucificado: «Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado?».
Por outro lado, este final fala claramente da necessidade do regresso à Galileia: «Lá me vereis».
É algo que já tinha aparecido no Evangelho: Temos uma primeira referência à Galileia em Mc 1, 14-16:
14Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de Deus, 15dizendo: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho.»

Mas também no início das negações de Pedro em Mc 14, 27-28:
Jesus disse-lhes: «Todos ides abandonar-me, pois está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas hão-de dispersar-se. 28Mas, depois de Eu ressuscitar, hei-de preceder-vos a caminho da Galileia.»”

Assim, o anúncio do final breve de Marcos não é só feito pelo jovem, mas já o próprio Jesus o tinha feito. Encontramos assim uma inclusão de carácter proléptico que encontra agora a sua explicitação.
Um dos aspectos mais intrigantes é o silêncio das mulheres. Mas ele representa um não fechar da narrativa, o que confronta o leitor com a necessidade da interpretação, pois tudo tem de ser reinterpretado. O livro começa na Galileia e aí acaba. O leitor termina o livro e começa-o de novo.

Evangelho de Mateus
Final do Evangelho: a acentuação do discipulado

Mt 28, 16-20
Os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando o viram, adoraram-no; alguns, no entanto, ainda duvidavam. Aproximando-se deles, Jesus disse-lhes:«Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.»

Esta parte final do Evangelho de Mateus ilumina todo o Evangelho. De facto, o tópico do discipulado é um tema chave em Mateus, que nos leva ao coração do próprio Evangelho. Não é por acaso que a última palavra de Jesus é o mandato de fazer discípulos. Mt é o único Evangelho em que Jesus manda fazer discípulos. O imperativo final é, pois, o programa que Jesus transmite aos seus discípulos.
O que significa este “fazer discípulos”, que nos aparece antes de baptizar? Significa fazer pessoas que guardem a palavra de Jesus, que recebam os ensinamentos. Guardar é colocar diante dos outros e trazer consigo, é guardar de forma explícita no seu coração. O discípulo é aquele que guarda e cumpre a Palavra de Deus. Fazer discípulos é então fazer alguém que guarda e cumpre os cinco grandes discursos de Jesus, pois os cinco discursos de Jesus são o material para a pregação dos Apóstolos.
É pois um Evangelho com um carácter didáctico, uma verdadeira escola cristã, onde surgem discípulos. É o Evangelho mais extenso, atravessado por uma preocupação pedagógica, de uma forma muito sistemática.
Alguns pormenores textuais reforçam este entendimento, como emprego do verbo “fazei discípulos”, que aparece quatro vezes no Novo Testamento, e dessas quatro, três surgem em Mateus. Aqui surge enfaticamente com o sentido de imperativo. Para além disso, o substantivo discípulo aparece 261 vezes no Novo Testamento, mas é em Mateus que essa palavra é mais recorrente. Daqui podemos inferir que o tema do discipulado, semanticamente, é um tema predominante em Mateus. A grande ordem é a de fazer discípulos.
Mas coloca-se a pergunta sobre o significado do «Ide»: para onde? Qual o objecto e destino deste caminho? Aparecem-nos quatro vezes, no interior do Evangelho, uma situação idêntica, que pode trazer uma nova luz a esta questão.
Mt 25, 32:
Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.
Mt 24, 14:
Este Evangelho do Reino será proclamado em todo o mundo, para se dar testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim.»
Mt 24, 9:
«Então, irão entregar-vos à tortura e à morte e, por causa do meu nome, todos os povos irão odiar-vos.

Percebemos assim que o mandato de Jesus é um mandato e apelo à universalidade. A abertura é total. Já em Mt 10, Jesus havia enviado os discípulos em missão. Mas aqui, em Mt 28 há um mandato universal.
A questão do Baptismo é igualmente importante em Mt. O que significa baptizar? Não se trata do baptismo de João, mas de um baptismo novo, que só Cristo é capaz de dar e transmitir. Há aqui também um carácter trinitário, como se a Santíssima Trindade se associasse à acção dos Apóstolos da Igreja.
O próprio lugar onde decorre a cena é também pleno de significado: foi na Galileia que pela primeira vez ressoou a palavra “Reino de Deus”; foi sobre o monte que haviam sido proclamadas as bem-aventuranças, e agora é lá que torna a falar Cristo Ressuscitado. Há pois uma continuidade muito grande: o monte é o Sinai, Jesus é o Novo Moisés, as Bem-aventuranças são a Nova Lei, no monte Jesus fala com autoridade. Temos aqui então um diálogo de paradigmas, de tipologias.
A autoridade com que Jesus fala sobressai nesta perícope, pois as próprias palavras de Jesus são uma manifestação de autoridade. Alguns autores afirmam que esta passagem de Mateus é o cumprimento de Dn 7, 13-14:
Contemplando sempre a visão nocturna, vi aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser semelhante a um filho de homem. Avançou até ao Ancião, diante do qual o conduziram. Foram-lhe dadas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o serviram. O seu império é um império eterno que não passará jamais, e o seu reino nunca será destruído.»

Mas o Evangelho de Mateus supera a profecia de Daniel, pois há um carácter de definitividade, no poder e autoridade recebidos, pois agora é de uma vez para sempre. O “todo” não está confinado a restrições, é um poder completo e total. O Cristo que aparece no final do Evangelho surge com a autoridade plena, típica da dicção de Mateus. Mas, aqui a autoridade é adjectivada, pelo que tem mais densidade.
O que Jesus faz garantir o seu poder e autoridade? Garante a sua presença aos discípulos. «Estou convosco até ao fim dos tempos». O “Estou convosco” é uma expressão teofânica com ressonâncias Veterotestamentárias usada por Deus em muitas situações em que intervém. O Deus do Antigo Testamento é um Deus que está com os personagens que escolhe até que a missão se realize. Há uma alusão clara ao “Emanuel”, segundo o recurso da inclusão, que é um aspecto muito importante no Evangelho de Mateus, como por exemplo em Mt 1, 23: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco. Mateus é, assim, o “Livro do Emanuel”.
Evangelho de Lucas
Os discípulos de Emaús
Lc 24, 13-36
13Nesse mesmo dia, dois dos discípulos iam a caminho de uma aldeia chamada Emaús, que ficava a cerca de duas léguas de Jerusalém; 14e conversavam entre si sobre tudo o que acontecera. 15Enquanto conversavam e discutiam, aproximou-se deles o próprio Jesus e pôs-se com eles a caminho; 16*os seus olhos, porém, estavam impedidos de o reconhecer.17Disse-lhes Ele: «Que palavras são essas que trocais entre vós, enquanto caminhais?» Pararam entristecidos. 18E um deles, chamado Cléofas, respondeu: «Tu és o único forasteiro em Jerusalém a ignorar o que lá se passou nestes dias!» 19Perguntou-lhes Ele: «Que foi?» Responderam-lhe: «O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; 20como os sumos sacerdotes e os nossos chefes o entregaram, para ser condenado à morte e crucificado. 21*Nós esperávamos que fosse Ele o que viria redimir Israel, mas, com tudo isto, já lá vai o terceiro dia desde que se deram estas coisas. 22É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deixaram perturbados, porque foram ao sepulcro de madrugada 23e, não achando o seu corpo, vieram dizer que lhes apareceram uns anjos, que afirmavam que Ele vivia. 24Então, alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres tinham dito. Mas, a Ele, não o viram.»25Jesus disse-lhes, então: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito para crer em tudo quanto os profetas anunciaram! 26*Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?» 27*E, começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito. 28Ao chegarem perto da aldeia para onde iam, fez menção de seguir para diante. 29*Os outros, porém, insistiam com Ele, dizendo: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso.» Entrou para ficar com eles. 30*E, quando se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho. 31Então, os seus olhos abriram-se e reconheceram-no; mas Ele desapareceu da sua presença. 32Disseram, então, um ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» 33Levantando-se, voltaram imediatamente para Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os seus companheiros, 34*que lhes disseram: «Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!» 35E eles contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir o pão.

Este relato de Lucas funciona como um micro-evangelho, uma espécie de síntese de todo o Evangelho.
Lucas desenha nesta perícope a experiência pascal da comunidade cristã. Todos os acontecimentos são colocados no quadro de um dia - o dia pascal - pois todos eles encontram na Páscoa a sua fonte, a sua razão de ser. O Evangelista Escolhe dois discípulos quase anónimos, figuras menores no quadro de construção do Evangelho, mas a quem Jesus aparecer e com quem faz a experiência pascal. Querendo dizer, desde logo, que não há figuras secundárias.
O autor conta-nos Jesus em três andamentos: encontro; palavra; casa / mesa.
Os discípulos saem de Jerusalém e realizam um encontro com Jesus. Valoriza-se a dimensão narrativa, não tanto o que Jesus diz, mas o que Ele faz, abrindo canais e deixando-se encontrar. Noutras passagens do Evangelho vemos como Jesus é um Mestre na arte do encontro, como no caso da mulher adúltera e de Zaqueu. Encontrar Jesus é então ser encontrado por Ele.
Os discípulos partem de Jerusalém e voltam a Jerusalém. Fazem o movimento de passar pelas três categorias. No encontro Jesus é um desconhecido, alguém que faz arder o coração; mas em casa e na mesa Jesus é reconhecido.
A mesa, em Lucas, é o lugar do reconhecimento de Jesus, da revelação de Jesus. O sentido da universalidade de Lucas faz com que tenha em mente o simpósio, a refeição literária grega, constituída pela comida e pelo topos (beber). A mesa tem um pacto narrativo, estabelece um protocolo narrativo. Comer é um acto humano, antropológico, e não meramente físico, por isso à mesa não se sentam estranhos.
O Evangelho de Lucas privilegia verdadeiramente a mesa e a casa como espaço privilegiado onde a identidade de Jesus nos é revelada. A casa de Emaús é a última casa onde vemos Jesus, mas há muitas outras anteriormente e são muitas as secções onde sobressai o destaque à casa e à mesa.
Logo no Evangelho da Infância começa com a Anunciação, até à entrada na primeira casa por parte de Jesus: a casa de Isabel. Por isso, o relato do nascimento é importante. Jesus nasce num estábulo e tudo está construído para dar relevo à manjedoura, lugar onde os animais comem. A manjedoura é assim importante para a definição do campo semântico da mesa, pois é o lugar da alimentação dos animais, ou seja, dos impuros. A manjedoura antecipa aquilo que é o tema principal de Lucas: a salvação e a sua universalidade.
Em Lc 7, 36-37 vemos também um fariseu que convida Jesus para comer consigo, o que não acontece nos outros Evangelhos. Lucas é ó único que situa este acontecimento num espaço de refeição e é o único que fala do convite dos fariseus. De facto, o grande momento de vida dos fariseus era a mesa e convidar um profeta para a mesa era um privilégio. Contudo, nunca há coincidência entre Jesus e o anfitrião, há sempre uma tensão.
Lucas começa e termina no Templo, mas o Evangelho constrói-se sobretudo na casa, lugar da revelação de Jesus. A casa é o lugar do habitual, do comum, do profano e do quotidiano. A dimensão da casa é, em Lucas, expressa em torno da mesa.
Porque é que Lucas dá tanta importância à refeição? Não é só porque sabe do seu valor antropológico, nem só porque conhece as categorias helénicas. O alimento tem um papel de primeiro plano na história da salvação como se percebe a partir dos escritos Vetereo Testamentários: o primeiro mandamento de Deus é um mandamento alimentar (não comer da árvore de fruto)
O banquete é o símbolo da tradição escatológica, e servirá de imagem para as parábolas de Jesus, pois sabe que uma refeição em Israel tem um determinado significado. A refeição quotidiana é uma imagem da refeição definitiva. Há assim um peso metafórico da tradição bíblica que faz com que Jesus escolha estrategicamente a casa.
A casa nunca é um lugar neutro: entrar em casa de alguém supõe relação, conhecimento, amizade e Jesus vai utilizar isso para estratégia da sua própria revelação. O campo semântico da refeição / comensalidade segue pois nesta linha. Não são tanto as comidas que estão em jogo, mas sim o banquete. Essa linha começa quando Jesus come pela primeira vez no Evangelho - Lc 5, 27–32 “Vocação de Levi” - e de uma forma que causa imediatamente problemas. É uma refeição comprometedora, pois Levi poderia ter escolhido um local neutro, mas convida-O para sua casa. Penetrar na casa é, assim, comprometer-se, é correr o risco de um compromisso existencial.
Por tudo isto podemos afirmar que em Lucas há verdadeiramente uma teologia da refeição, e essa é uma das linhas semânticas mais significativas de todo o Evangelho.


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