quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Análise Narrativa 6 (Narrativa de São Mateus)

BORING, M. Eugene, “Matthew’s Narrative Christology: Three Stories”, in Interpretation, a Journal of Bible and Theology, Vol. 64, nº. 4, October 2010, pp.356-367.

A nossa apresentação sobre o que é específico no evangelho de São Mateus segue os três momentos ou as ‘três histórias’, cujos títulos são adaptados por nós, apresentadas pelo professor emérito de Novo Testamento, Eugene Boring, na construção da Cristologia Narrativa de São Mateus que tem como base quer o evangelho de São Marcos quer a fonte de 'ditos do Senhor' (fonte Q), para construir uma nova interpretação sobre Jesus quer como o ‘Emmanuel’ quer situando-O na linhagem davídica (filho de David) apresentando Jesus como Rei, título para o qual parecem convergir todos os outros títulos messiânicos como se verá.

1º Momento: História e interpretação da cristologia de São Mateus

Para o professor Boring a cristologia que São Mateus apresenta é teocêntrica e é expressa em modo narrativo (cfr., p.356). Na verdade, São Mateus partilha com a comunidade cristã a convicção de que Deus enviou o Seu Messias prometido (cfr., p.356). Na escrita do seu evangelho parte desta convicção, mas não elabora uma cristologia em sentido sistemático, antes a sua cristologia (bem como a sua escatologia e eclesiologia), é expressa em modo narrativo (cfr., p.356), por isso esta cristologia narrativa só está disponível para os seus leitores e ouvintes se estes estão interessados na história que ele cria e na qual Jesus é o ‘Emmanuel’ (cfr., p.356).
Deste primeiro momento podemos concluir que a distinção académica realizada no século XVIII entre teologia dogmática e bíblica possibilitou o aprofundamento de ambos os campos do saber teológico, sendo que com a hermenêutica histórica aplicada ao campo da teologia bíblica esta contribuiu, aplicada aos textos do NT, para a explicação do significa, no seu contexto histórico, dos títulos messiânicos atribuídos a Jesus (cfr., p.357). Desta investigação pode ser positivamente retirado que tais títulos não podem nem devem ser considerados de forma isolada, mas antes devem ser vistos na relação entre si e como elementos dinâmicos que fazem parte de uma cristologia global presente em São Mateus (cfr., p.359), sendo que os títulos messiânicos atribuídos a Jesus em São Mateus, segundo opinião de Eugene Boring, dizem respeito à realeza de Cristo quer directamente (Cristo, Rei, Filho de David) quer indirectamente (Filho de Deus, Filho do Homem) (cfr., p.359). Ora, é esta cristologia narrativa que é específica em São Mateus, pois aponta para a dimensão da realeza de Jesus Cristo, como Filho de David e Filho de Deus, cujo Reino Ele anuncia e medeia como ‘Emmanuel (cfr., p.359).

Momento: História do Evangelho – A formação do texto mateano

Para tratar este momento de formação do texto de São Mateus o professor Boring destaca quatro momentos significativos que apresentaremos resumidamente.
Podemos concluir deste 2º momento que o texto de São Mateus corresponde a um processo de composição que tem o seu início na transformação cristológica que tem como base o acontecimento da ressurreição, dando uma nova luz sobre a pessoa, vida e missão de Jesus e fundando a própria cristologia de mateana (cfr., p.360). Ao mesmo tempo a formação do texto mateano deve-se ainda uma reinterpretação do mesmo a partir da fonte Q, justamente porque esta dá uma reinterpretação radical e autorizada da Torá (cfr., p.361), e ao mesmo tempo no que diz respeito aos títulos messiânicos o mais usado nesta fonte com sentido cristológico é o de ‘Filho do Homem’ (cfr., p.361).
Mas a formação do texto não fica por aqui, mas antes usa uma nova forma narrativa que se dá quando a comunidade de São Mateus passa a usar o evangelho de São Marcos como uma tradição cristã autorizada e não somente a fonte Q (cfr.,p.361), o que gera uma grande transformação na cristologia mateana, pois ela traz consigo a relação entre ao kerigma e a teologia de São Paulo, bem como a múltipla e variada gama de títulos cristológicos utilizada na composição marcana. Por último, na última fase da sua formação o texto de São Mateus, devedor do evangelho de São Marcos e da fonte Q que eram usados na comunidade, procede a uma definitiva reinterpretação de ambos os textos usando para o efeito o método bíblico do re-contar (cfr., p.361), ou seja, São Mateus vai usar o midrash que já conhecia. Assim, São Mateus reconta a história actualizando-a o que implica uma união entre o texto e a interpretação, dando a origem a um novo texto (cfr., p.362).

3º Momento: História do Evangelho – Composição da Narrativa de São Mateus

Eis-nos chegados ao momento mais importante deste artigo, sabendo que os dois momentos anteriores são importantes para a compressão desta terceira história. Assim, Eugene Boring, para chegar ao evangelho de São Mateus tal como ele se nos oferece, nomeadamente, no diz respeito à sua cristologia narrativa começa por fazer uma breve síntese sobre as tradições presentes neste evangelho e de como São Mateus as integrou e relacionou interpretando-as formando assim a sua cristologia.
O professor Boring começa por considerar que São Mateus adopta a narrativa marcana como sua estrutura (‘framework’) básica (cfr., p.362). São Mateus adopta e adapta a narrativa de São Marcos, mas faz uma interpretação da sua teologia. Preserva as suas afirmações cristológicas fundamentais, no entanto não se fixa nos significados que São Marcos lhes dá (cfr., p.262). De tal maneira é assim que relativamente ao ‘segredo messiânico’ presente em São Marcos, São Mateus como que o desvela logo ao início, pois ao integrar a história do nascimento, na qual não só Maria e José, mas também Herodes e os Magos, sabem que o Messias acabou de nascer, o que faz com que quando Jesus se apresenta para ser baptizado por João, este já saiba quem Ele é (cfr., p.362). Ora, para Eugene Boring em São Mateus só temos vestígios do ‘segredo messiânico’ e tem nele um papel diferente do que na narrativa de São Marcos (cfr., p.362).
Outro aspecto posto em relevo por Eugene Boring diz respeito ao facto de que São Mateus insere o material da fonte Q nesta estrutura básica, sendo que este material torna-se parte desta estrutura e é através dela interpretado (cfr., p.362). A esta inserção preside à preocupação de que tais ‘ditos do Senhor’ (fonte Q) eram muitas vezes facilmente separados da história do Jesus crucificado e ressuscitado, o que poderia levar erroneamente a que se entendesse estes ditos como uma sabedoria independente ou como bons conselhos e não como a Boa Nova (cfr., p.362).
São Mateus vai mais longe ao envolver a narrativa de São Marcos com a ‘história do nascimento’ e as ‘aparições do Ressuscitado’, o que dá à narrativa um começo e um fim apropriados (cfr., p.363). Ora, a promessa messiânica, no final do evangelho (28:19) de que o Cristo ressuscitado permanecerá com a Sua Igreja, constitui uma ‘inclusio’ com a promessa inicial de Deus constituirá Jesus como ‘Emmanuel’ (1:23), o que faz com que a ‘história do nascimento’ constitua chave de leitura e dê as categorias com que o evangelho há-de ser interpretado (cfr., p.363). São Mateus reestrutura as tradições (Marcos e Q) de forma a dar uma extensiva secção introdutória, o que faz com que a I parte do evangelho (1:1-12:21) se constitua como a chave de interpretação da II parte (12:22-28:19) (cfr., p.362).
Importa referir que tal reestruturação não é aleatória (‘random’), mas está ao serviço do enredo/desenvolvimento/plano (‘plot’). A fonte Q não era de todo uma narrativa, embora se pudesse formar uma a partir dela (cfr., p.363), no entanto o evangelho de São Marcos já o era verdadeiramente e nela estavam ligadas pelo enredo (‘plot’) quer as histórias quer os ‘ditos’ (cfr., p.363). Ora, São Mateus o que vai fazer é tornar mais explícito e evidente este ‘plano’ (‘plot’) mediante a reestruturação destas fontes de tal maneira a que toda a narrativa possa ser lida em apenas um ‘plano’ narrativo (plot) de compreensão (cfr., p.363). Pois esta ‘ordem dos acontecimentos’ (‘plot’) no evangelho de São Mateus resolve o conflito sobre os ‘reinos’ (cfr., p.363), uma vez que a permanência das designações cristológicas sugerem, segundo Boring, que a variedade dos títulos em São Mateus parece convergir na imagem real de Jesus como Rei (cfr., p.363). Tal facto é atestado por Eugene Boring pela seguinte selecção de textos:

Mt 1:1 – São Mateus inicia a sua narrativa por meio de uma série de títulos. Assim na genealogia temos que esta é a narração da história de ‘Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão’ (cfr., p.364). Ora, que Jesus é ‘filho de Abraão’ diz a sua condição de judeu que faz parte da história da aliança do povo de Deus, mas tal não revela um tema cristológico. Todavia o caso é diferente quando Jesus é dito ‘filho de David’ e quando é dito ‘Cristo’. Na verdade, o par ‘Filho de David’ e ‘Cristo’ sugere que São Mateus quer que o Messias seja entendido nos termos de um Reinado escatológico (2 Sam 7:1-17) prometido por Deus (cfr., p.364).
Mt 1:6b-17 – Ao apresentar Jesus como o ‘Filho de David’, São Mateus mostra que Jesus descende dos reis de Israel.
Mt 1:23 – Neste passo, que relata o modo como Jesus foi gerado, São Mateus usa a fórmula de Isaías (7:14) segundo a qual ‘o filho da virgem será chamado “Emmanuel”, Deus connosco’. Relativamente a esta passo Boring refere que no contexto do oráculo de Isaías ele está relacionado com a ‘casa de David’ (Isa 7:2, 13).
Mt 2: 1-4 – Aqui parecem não existir dúvida, uma vez que logo após o nascimento de Jesus, Magos do oriente dirigem-se a Jerusalém à procura do Rei acabado de nascer, ao mesmo tempo que São Mateus no mesmo contexto identifica ‘Rei’ e ‘Messias’ (cfr., p.364). Boring alerta ainda para o paralelo que existe entre Jesus e David (1 Sam 8; 2 Sam 7).
Mt 3:2, 15, 17 – No evangelho de São Marcos, João Baptista proclama um baptismo para perdão dos pecados e Jesus vai submete-se a esse baptismo. Ora, tal facto introduz um tema cristológico que ‘atormentou’ (plagued) os evangelistas posteriores (cfr., p.364). São Mateus responde a este problema reescrevendo a mensagem de João Baptista, e fá-lo transferindo o perdão dos pecados para o ministério de Jesus (Mc 1:4 ; Mt 26:28) e introduzindo a proclamação do Reino de Deus de Jesus para João (Mc 1,14; Mt 3:2). Ao mesmo tempo no baptismo de Jesus, a Voz vinda do céu que declara Jesus como o ‘Filho de Deus’ relembra a coroação do rei expressa no Sl 2: 6-7, na qual se relaciona a linguagem da realeza (‘kinship’) com a da filiação (‘sonship’). E tal como o rei davídico é revestido com o Espírito do Senhor para desenvolver a sua missão tal como se declara em Is 11: 1-5 (cfr., p.365).
Mt 4: 1-11 – Jesus é tentado pelo demónio que Lhe diz: «Se és o Filho de Deus… ». Nas tentações o demónio não põe em causa a filiação ou realeza de Jesus, mas tenta-O no que diz respeito à natureza do seu ‘domínio’/ ‘governo’/ ‘reinado’ (‘rule’) e tal torna-se mais claro quando na última tentação (4: 8-9) o demónio Lhe oferece o poder sobre um sem número de reinos (cfr., p.365). Torna-se assim manifesto que Jesus é rei, a questão está em saber qual será a natureza do seu ‘reinado’ (‘rule’), do Seu ‘domínio’ (cfr., p.365).
Mt 16: 13-20 – Neste último texto Pedro confessa a Jesus como sendo ‘o Cristo Filho do Deus vivo’. Ora, São Marcos apenas refere na confissão de Pedro que este é ‘o Cristo’ (Mc 8: 27-30), enquanto São Mateus acrescenta ‘Filho do Deus vivo’ (cfr., p.365). Nas palavras de Eugene Boring a confissão mateana de Pedro não a torna mais matefísica, antes a torna mais da ordem da realeza (cfr., p.365), pois o importante não é saber que Jesus é o ‘Filho de Deus’ e como tal não é meramente humano (São Mateus não tem dúvidas de que Jesus é verdadeiramente humano e divino), mas é a de que Jesus é o Rei anunciado por Deus (cfr., p. 365). De facto a cristologia de São Mateus não está centrada na condição metafísica da Pessoa de Jesus, mas no ‘papel’/ ‘função’ (‘role’) que Jesus tem na restauração da soberania (‘sovereignty’) de Deus Criador, ou seja, no estabelecimento final da justiça de Deus sobre a criação (cfr., p.365).

Neste sentido, o professor M. Eugene Boring pergunta que espécie de Rei é este (‘what kind of king’)? Procurando responder a esta última questão, o professor Boring começa por evidenciar que a linguagem e o imaginário sobre o ‘reinado’/‘soberania’/‘realeza’ são omnipresentes no AT e impregnaram não só as suas Escrituras mas as suas tradições religiosas (cfr., p.365). Mesmo os primeiros cristãos tiveram, tal como se tem hoje, dificuldade em lidar com esta linguagem como modo de veicular a fé cristã (cfr., p.365). Todavia, dá-se uma transformação fundamental quando tal aparato linguístico e imagético é preenchido por um novo conteúdo que é dado pela vida e morte de Jesus de Nazaré (cfr., p.366). Não obstante, existe uma variedade de usos desta linguagem no NT. São Marcos representa aqueles primeiros cristãos que adoptaram a linguagem da ‘realeza’ e do ‘messianismo’, mas restringiu o uso do título ‘Filho de David’ (em São Marcos aparece apenas 3 vezes) por causa das suas conotações ao imaginário da violência e do militarismo (cfr., p.366). Ora, segundo Boring, São Marcos aceita o termo Messias e rei, mas não ‘Filho de David’ como uma categoria cristológica legítima (cfr., p.366).
Pelo contrário São Mateus é sensível a este assunto, pois os seus textos atestam justamente, como se viu, a centralidade do tema da ‘realeza’ (‘kinship’) de Deus na sua cristologia ao mesmo tempo que se levanta a questão de saber o que significa Jesus ser rei (cfr., p.366). A verdade é que São Mateus, que usa a narrativa de São Marcos como estrutura básica na construção do seu evangelho, continuou a reinterpretação de São Marcos e fê-lo mediante a inclusão do título ‘Filho de David’ na sua narrativa dando-lhe um maior significado cristológico (cfr., p.366). É por isso que São Mateus identifica ‘o Cristo’ com o ‘Filho David’ logo no início do seu evangelho e ao mesmo tempo coloca Jesus como fazendo parte da genealogia real de David (cfr., p.366). Para além deste aspecto, São Mateus aproveita a referência positiva a David dada por Marcos em 2: 25 (quando David teve fome) e em 10: 47-48 (quando Jesus é identificado e associado como ‘Filho de David’ capaz de actos de misericórdia e compaixão), para falar de Jesus como o ‘Filho de David’ porque Ele representa a misericórdia de Deus (cfr., p.366). Reside aqui a radical interpretação de São Mateus sobre a ‘soberania’/ ‘reinado’ de Deus, pois Jesus é o rei messiânico prometido mas tido como o ‘servo de Deus’ anunciado por Isaías (42: 1-4) e que São Mateus cita ao concluir a I parte da sua narrativa (12: 18-21). Esta citação segundo Eugene Boring constitui uma síntese sobre a caracterização da natureza do Reinado de Deus que Jesus torna presente. Na verdade, diz-nos o professor Boring, o Reino de Deus não é um tópico separado ou paralelo às imagens de Jesus como ‘Cristo’, ‘rei’, ‘Filho de David’ e ‘Servo’, antes a narrativa mateana as une numa única história que consiste no aparecimento do Reino de Deus no meio dos reinos deste mundo (cfr., p.366).
O professor Boring termina referindo que a mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus evoca a mítica imagem da restauração escatológica da criação pela soberania do Criador (cfr., p.367). Por isso diz: «Christology is thoecentric, and Christology is not an alternative or supplement to faith in the one God. The issue of Christian faith is whether God is in fact the One who acted redemptively in the life, death, and resurrection of Jesus. Christology is not oriented to the question, “Who is Jesus?” but “Who is God?”. For Matthew, this question is not separable from the person of Jesus, who is God-with-us» (p.367).

Podemos terminar referindo que a cristologia de São Mateus se vai tecendo à medida que o texto de São Mateus avança e que esta ‘cristologia do reinado de Deus’ não pode ser pensada de forma isolada no evangelho de São Mateus, mas que ela está presente no início, no meio e no fim do evangelho, pois Jesus é o ‘Filho de David’, ou seja, o Messias-Rei revestido pelo Espírito de Deus (o ‘Cristo’, ungido do Pai pelo Espírito) que representa a misericórdia de Deus. É o Rei adorado pelos Magos e confessado por Pedro. É no princípio e no fim o ‘Emmanuel’ que permanece connosco, na força do Espírito e através da Igreja, até à consumação escatológica do Reinado de Deus quando Ele vier como o ‘Filho do Homem’.

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