sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mateus
A escolha que Mt faz quando escreve o evangelho é fundamentalmente fazer uma narração. Há um vigor ético, uma exigência ética tão forte que às vezes levou a questionar se o evangelho fosse mesmo um evangelho ou um tratado de moral. Mas isto é um exagero. Para fazer esta narração centrada na pessoa de Jesus, Filho de Deus, Mt vai desde o nascimento até à Ressurreição, num relato extenso (28 capítulos) e muito marcado pelo ensinamento de Jesus, pelas acções proféticas com que Jesus vai marcando a sua missão e, enfim, pelos sofrimentos da Paixão (tem uma força dramática própria).
A linguagem de Mt não é a da argumentação, como em Paulo, nem a da visão, própria do Apocalipse. Mt conta a história de um Jesus terreno: a comunicação da fé em Jesus passa pela narração daquela vida concreta de Jesus.
Mt amplia o espaço geográfico relativamente à pessoa de Jesus. Se Mc começa com João Baptista e termina com o sepulcro vazio e o temor das mulheres, Mt começa com o nascimento de Jesus e termina com as aparições do Ressuscitado na Galileia. Também no que diz respeito à doutrina de Jesus, Mt amplia o espaço geográfico organizando o material em cinco grandes discursos: o da montanha (5-7), missionário (10), em parábolas (13), eclesial (18), escatológico (24-25). Há nisso uma pretensão: criar um paralelo entre Jesus e Moisés, que os antigos pensavam ser o autor dos cinco livros da Lei (Pentatêuco). Jesus é então o autor do Novo Pentatêuco.
Em relação ao tema, o evangelho de Mt é também chamado o do Emanuel (Deus connosco).
A história de Jesus para Mt apresenta-se como o segmento central e decisivo duma história que, a partir do presente – Jesus, começa no passado e termina no futuro. No passado, porque existe uma ligação ao A.T., sendo o evangelho uma espécie de caixa de ressonância que mais cita o A.T.; quanto ao futuro, e sobretudo quando lemos Mt 28,16-20, percebemos que há ma ligação entre o evangelho e a Igreja. Assim, Mt liga o passado de Israel ao presente de Jesus e ao futuro da Igreja.
O gosto pela organização, próprio de Mt, faz com que o evangelho fosse dividido, desde os primeiros séculos, em cinco partes. Primeiro arranque, Mt 1,1: princípio do Evangelho de Jesus Cristo, filho de Deus, filho de Abraão (algo novo). Segundo arranque, 4,17: começa o anúncio do Reino e a vida pública de Jesus. Terceiro arranque, 16,21: Jesus começa a mostrar aos seus discípulos que era preciso ir para Jerusalém; começo do evangelho da Paixão. Neste gosto de organização, são interessantes as simetrias criadas propositadamente (exemplo: Negação de Pedro por três vezes – Oração de Jesus no Getzémani, onde por três vezes foi ter com os discípulos que estavam dormindo; presença do numero sete: maldições, petições, parábolas, demónios, perdoar setenta vezes sete; etc.).
O que mais o caracteriza é o ambiente de crise do judaísmo em que ele se insere e pela ruptura que resulta do anúncio do Reino. Por exemplo, a relação que Jesus tem com os fariseus em Mt não tem nada a ver com a que mostra Lc. Aqui há uma ruptura clara, não há convívios nem refeições em conjunto. Porque? O judaísmo com que Jesus se confronta no evangelho não é o judaísmo que Jesus conheceu no tempo da sua vida terrena. Ao tempo de Jesus o judaísmo estava dividido em vários partidos: Saduceus, Essénios, Fariseus, Zelotas. Há portanto nesta altura uma clara crise da autoridade. Mas o judaísmo com que se confronta o evangelho de Mt não é este mas o de pós 70, o da destruição do Templo. O judaísmo que daí vai surgir não é o sacerdotal, ma o dos fariseus: fica como centro a Palavra e a Lei. Assim, o mundo que Mt tem diante dos olhos quando escreve o evangelho, é o mundo que vai transferir para o tempo em que Jesus viveu, onde aparece esta clara ruptura. Trata-se, portanto, dum momento de encruzilhada. Então o evangelho de Mt apresenta-se como uma apologia de Jesus e dos cristãos. Isso não está de forma tão clara nos outros sinópticos como o está em Mt: questão de quem é o verdadeiro Israel. Não é por acaso que a palavra ekklesia apareça três vezes em Mt, e não aparece de todo em Mc e Lc. Há uma insistência manifesta na questão eclesiológica.
Quanto à Genealogia de Mt, apresenta-se como um verdadeiro tratado teológico onde, numa forma quase homeliética, procura-se apresentar Jesus como o Filho de David. Se Mt a coloca logo no princípio, Lc por exemplo adia-a ao terceiro capítulo. Em Lc temos a preocupação de apresentar Jesus como o Filho de Adão, e portanto ligado á história da humanidade, onde aparecem todos os tipos de homens, bons e maus (universalidade da salvação). Em Mt Jesus não é o Filho de Adão, mas de David. Em 1,1-17, temos a subdivisão da Genealogia de Jesus em três grupos de catorze gerações: de Abraão a David , catorze gerações; de David à deportação na Babilónia, catorze gerações; da deportação na Babilónia a Cristo, catorze gerações. No hebraico, os números correspondem às letras do alfabeto, pelo que o nome hebraico David (דוד) corresponde a ד 4 + ו 6 + ד 4 = 14. Isso significa que Jesus é três vezes David. Ainda na Genealogia aparecem nomes de cinco mulheres (Tamar, Raab, Rute, mulher de Hurias, Maria) que têm em comum o facto de serem ilegítimas e que tiveram partos extraordinários no sentido de não serem segundo a Lei. Assim, cada um destes nascimentos vai tornar menos inquietante o nascimento de Jesus de Maria. Mas Jesus é filho de David por José: importante do ponto de vista legal da paternidade (Lc apresenta-o do ponto de vista de Maria).
O evangelho da infância de Mt também se caracteriza pela sincrese (comparação), onde emergem Jesus e Herodes. Assim como no tempo de Jesus, Herodes mandou matar todos os filhos primogénitos, Mt compara-o com o tempo de Saul (= Herodes) e de David (= Jesus) ressaltando, dessa forma, um contexto de rivalidade. O mesmo diga-se em relação aos Magos, que vieram para adorá-lo, como cumprimento das promessas messiânicas de Isaías em que as nações pagãs virão adorar o Senhor, ao passo que Herodes quer matá-lo. Fogem então para o Egipto, apresentando um paralelismo com o povo de Israel que será salvo da escravidão do Faraó. Isso que está aqui explícito o será em todo o evangelho, que se apresenta como fundamentação do percurso histórico de Israel. Sendo assim, o evangelho da infância em Mt apresenta-se como um guia proléptico. Neste sentido o fim está no princípio.
Quanto ao discurso missionário do capítulo 10, a diferença dos outros dois evangelhos sinópticos em que encontramos material disperso (apesar de que em Lc apareça a tradição do envio dos setenta e dois, ausente em Mc e Mt), o evangelho de Mt organiza tudo num único discurso. A insistência na vida missionária em Mt tem a ver com as fontes dos ditos do Senhor em que a vida itinerante está fortemente marcada. O judaísmo não tem muito esta dimensão missionária, mas o cristianismo sim, pertence à sua realidade histórica com a formação de comunidades em diversos lugares.
O capítulo 11, que se abre com a pergunta de João Baptista sobre a identidade messiânica de Jesus, e portanto se era verdadeiramente ele o Messias ou se tinham que esperar outro, manifesta a intenção implícita da resposta de Jesus no sentido de olhar para aquilo que se está a realizar na história (os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, etc.). É desta percepção histórica que podemos descobrir quem é Jesus.
O capítulo 12 representa o conflito com o judaísmo na questão do sábado e se é lícito ou não curar neste dia. Para Jesus, o sábado tem apenas um valor instrumental. Este conflito é de maior importância para os fariseus porque sentiam em Jesus uma ameaça. Outro conflito diz respeito à questão dos laços familiares, que junto com a Lei, eram o fundamento do ser judeu (nasce-se judeu). Mas em Jesus a família deixou de ser um absoluto para ser relativizada, no sentido que vai ganhando um espaço próprio relativamente á Lei e aos pilares fundamentais da vida social e nacional.
O capítulo 13 é o discurso das parábolas, que tem como centro a temática do Reino dos Céus, pré-anunciado desde o começo da vida pública de Jesus como programa do seu messianismo (Mt 4,17).
Entre o discurso em parábolas e o discurso eclesial temos uma ampla secção narrativa onde também aparecem conflitos: se Jesus é o Novo Moisés, o Novo Israel, ao mesmo tempo ele afasta-se deste Israel. Em Nazaré é afastado pelos próprios cidadãos (cap. 13); Jesus recusa-se a dar um sinal àqueles que lho pediam (cap. 16).
Num todo, há um momento de auto revelação de Jesus (duas multiplicações do pão, no cap. 14 e 15; cura da filha mulher cananêia, cap. 15; confissão de Pedro, cap. 16). O episódio da Transfiguração do capítulo 17 representa o cume deste momento de auto revelação. Mas aqui já aparecem os primeiros anúncios da Paixão.
O capítulo 18 é o discurso eclesial. Podemos dividi-lo em três temas principais: Israel, o próprio Jesus (quem é ele?), a Igreja. Aqui Mt fala do que é o discípulo e o discipulado. Mc também é uma “máquina para fazer discípulos”, mas Mt é diferente, porque faz uma reflexão sobre a Igreja na sua estruturação. Isso significa que quando o evangelho foi escrito já havia uma história sobre a Igreja.
Entre o capítulo 18 e 19 temos outro material narrativo: outras parábolas (figueira, dois filhos, vinhateiros homicidas, banquete de núpcias).
O último discurso, dos capítulos 24-25, é o Escatológico. Temos uma linguagem apocalíptica, que vai na ordem da transformação em ordem à substituição de modelos. Tem três partes: uma primeira em que se apela ao reconhecimento do verdadeiro sinal perante os outros falsos; o segundo caracterizado pela dimensão da ignorância relativamente ao dia e à hora e um apelo á vigilância; o terceiro, onde se afirma a grande majestade de Cristo que vem como o Filho do Homem que virá no final dos tempos para julgar as nações. Este discurso escatológico não é somente a projecção daquilo que há-de vir, mas é o presente que ressalta a marca e a particularidade do ser cristão.
No exercício comparativo entre os Sinópticos, percebemos que há zonas muito coincidentes no que diz respeito ao relato da Paixão. Em Mt encontramos porém elementos que lhes são próprios: Jesus é assistido pelo Pai (26,53); Morte de Judas (27,3-10); a mulher de Pilatos (27,19); Pilatos se lava as mãos em sinal de não querer ser responsável pela morte de Jesus (27,24-25); o véu do Templo rasga-se em duas partes e prodígios cósmicos que acompanham a sua morte (27,51-53); a guarda do túmulo (27,62-66). Em Mt vemos como é Jesus que controla a situação, sabe o que lhe vai acontecer, por isso controla os silêncios, as orações, ele é o centro.
A Ressurreição e as aparições do Ressuscitado do capítulo 28, tal como em Mc, são-nos contadas pelo negativo: vazio, ausência. Mas esta ausência transforma-se em presença. A última frase do evangelho manifesta bem aquilo que é a intenção do mesmo: “Eu estarei convosco até ao fim dos tempos”: é o evangelho do Emanuel, do Deus connosco.

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