terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Lucas

Lendo Lucas, apercebemos-nos que é um evangelho visual onde a questão do ver é uma trave mestre. Não se trata apenas de um “olhar para Jesus”, mas é uma visão que procura estabelecer uma relação, um conhecimento. Mas é uma visão que nos é relatada de forma dramática: há um ver e um não ver. Em 19,1-10, Zaqueu procurava ver Jesus; as próprias multidões acorriam ao seu encontro para vê-lo. Procura-se responder a esta pergunta: quem é Jesus? O drama da visão encontra uma síntese em Lc 24,14-34, no episódio dos discípulos de Emaús. É um texto que só aparece em Lc. Em Mt e Mc as aparições acontecem a pessoas conhecidas, mas a particularidade de Lc neste texto é que elas se dão a dois desconhecidos (sabemos somente o nome de um deles, Cleofas). Mas porque aparece somente em Lc? Em Lc temos duas tradições: por um lado a dos doze; por outro, a dos setenta e dois que são enviados em missão (10,1-12). É deste círculo alargado de discípulos que seguem Jesus que se pensam que fizessem parte os dois de Emaús. Há neste texto a pretensão duma construção da fé pascal que passa do ver ao crer. Os discípulos de Émaus estavam impedidos (krateo) de o reconhecer. Este verbo aparece no evangelho referido aos incrédulos, àqueles que recusam reconhecer (guinosko) Jesus. Estavam impedidos, em primeiro lugar, pela desilusão: pensavam que seria ele aquele que viesse libertar Israel. O “forasteiro” Jesus faz os discípulos falar, fazendo uma espécie de síntese daquilo que pensavam sobre ele. Primeiro dizem: Jesus de Nazaré. Para Lc Nazaré não é somente o lugar onde cresce Jesus, mas é o lugar da unção pelo Espírito que repousa sobre Ele, onde a sua morte como profeta é prefigurada pela recusa daqueles que são da sua terra (4,16-30). E continuam: Jesus de Nazaré, grande Profeta em obras e Palavra”. Esta expressão, “Profeta”, aparece também em Lc 13,34 (recusa) e em 7,16 (um grande Profeta apareceu entre nós. E todos glorificavam a Deus). Mas ele não é apenas um Profeta, mas é grande em palavras e obras. É a afirmação de Jesus como o Novo Moisés, que foi também um grande profeta em palavras e obras. E por último dizem: “esperávamos que foi ele quem viesse libertar Israel”, o mesmo que fez Moisés, libertar o povo de Israel do Egipto. Em todas estas palavras está uma intenção manifesta como entendiam Jesus. Mas tudo isso é pouco. Por isso Jesus lhes denuncia a insensatez e a dureza de coração para crer em tudo aquilo que os profetas tinham pré-anunciado. E leva-lhe do ver ao crer, ao reconhecimento de Jesus como Cristo e Messias. E o faz através da Mistagogia do caminho, da Palavra, da Casa onde entram, e da mesa, onde o reconhecem ao partir do pão. É aqui então que os discípulos de Emaús o reconhecem e confessam como Senhor (Kyrios): termo pós-pascal. É interessante ver como em Lc o 60% do evangelho falam da casa e duma refeição. Tanto é assim que alguns estudiosos dizem que Jesus foi morto pela forma como ele comia, da sua comensalidade, algo completamente novo porque come com os pecadores. Assim, o fim do Evangelho de Lc é o seu começo.
Mas o que mais caracteriza o evangelho de Lc é o lugar privilegiado que Jesus escolhe para auto-revelar-se: as refeições. São tipicamente de Lc os textos de 7,36-50 (Jesus é convidado para uma refeição na casa de um fariseu, onde aparece uma mulher pecadora que era a prostituta da cidade); 11,37ss (Jesus, convidado na casa de um fariseu para uma refeição, critica e distancia-se das leis de purificação dos copos e da lavagem das mãos); 14,1-24 (Jesus aparece como um “mestre de etiqueta” quando, convidado para uma refeição na casa dum dos chefes dos fariseus, estabelece o protocolo da mesa e de como as pessoas se deviam sentar). É interessante notar como em Lc o facto de Jesus ser um Benfeitor Divino representa apenas uma retórica da persuasão através da qual quer chamar à atenção, isto é, no sentido de olhar para a pessoa de Jesus como o cumprimento das promessas: ele é o verdadeiro Messias. Mas isto está presente de forma geral em todos os evangelhos. Em Lc, no entanto, ganha um aspecto fundamental não tanto o reconhecimento de Jesus como o Benfeitor Divino, mas o seu reconhecimento como tal a partir dum ponto de fricção, de divergência: as refeições com os pecadores. É aquele que muda as regras, que é acusado de comilão e beberrão (Lc 7,34), que come com os fariseus. Se no evangelho de Mt havia uma rivalidade com os fariseus, em Lc há uma espécie de implicação destes com Jesus (no cap. 13 são os próprios fariseus que alertam Jesus que Herodes quer matá-lo). Mas mais ainda, o facto de que quando por exemplo no envio dos setenta e dois (cap. 10) Jesus envia os discípulos a pregarem nas cidades, a entrarem nas casas e a comerem aquilo que lhes ofereciam, era lago completamente novo e ao mesmo tempo espantoso. Os filósofos cínicos, os próprios mestres judeus, faziam esta experiência de itinerância, mas no entanto eles não entravam nas casas para as refeições, apenas pediam esmolas para poderem comer. Percebemos então que Lc quer dar à mesa e às refeições um lugar de destaque: a mesa está cheia de implicações, é a questão do “comer com”, duma partilha de relações que é própria da mesa e da comensalidade (forte sentido antropológico das refeições). Mas é a partir da forma como Jesus o faz que se torna um suspeito (a primeira refeição de Jesus com os pecadores que nos aparece em Lc é a do capítulo 5, 27-32). Tanto é assim que Robert Karris disse que Jesus foi crucificado pela forma como ele comia.

Sem comentários:

Enviar um comentário