terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Análise Narrativa 5

A narrativa de São Marcos


O evangelho de São Marcos é certamente um evangelho com características muito próprias e muitas poderiam ser destacadas. Não obstante, destacaríamos quatro características que nos parecem bastante importantes para a teologia narrativa de São Marcos presente no seu evangelho.
A primeira característica a relevar em São Marcos refere-se ao narrador marcano que conta a história de Jesus fora do próprio relato, ou seja, o narrador de São Marcos não é de todo um personagem da história. De tal maneira assim é que o narrador inicia o relato em tempo passado (Cfr., RHOADS, David, DEWEY, Joanna, MICHIE, Donald, Marcos como relato, Trad. Rosa A. Martín Vegas, Ed. Sígueme, p.61) e ao mesmo tempo este narrador não só não está condicionado pelo espaço e pelo tempo, pois conhece toda a história que pretende narrar, como é um narrador omnisciente, por isso é capaz de contar não só as palavras e acções das personagens, incluindo de Jesus, mas também o que pensam, o seu estado de ânimo, os seus sentimentos íntimos (Mc 2: 6-7; 3: 5).
A segunda característica que poderia ser evidenciada no evangelho de São Marcos e que diz respeito ainda ao narrador tem a ver com o facto de este conduzir o leitor por meio de apartes, de informações, comentários e traduções de termos aramaicos que ajudam à compreensão do texto. Na verdade, o narrador parece dirigir-se directamente ao leitor (Mc 13: 14; 6:6; 7:19). Mas importa saber que este narrador não é neutro (Cfr., Marcos como relato, p.65), e isso fica imediatamente expresso pelo primeiro versículo do primeiro capítulo de evangelho marcano: «Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus». Ao mesmo tempo podemos ver essa confirmação em inúmeros passos do evangelho de São Marcos quer quando o narrador induz o leitor a valorizar ou a desvalorizar determinada personagem, ou seja, apresentando-a como uma personagem simpática ou até empática (Mc 7: 24-30; ) como no caso da mulher siro-fenícia ou do “jovem” rico (Mc 10: 17-22), ou como uma personagem antipática (Mc 12, 13) como são os fariseus ou os doutores da Lei considerado então como opositores de Jesus.
A terceira característica importante do evangelho de Marcos é uso recorrente e importante da figura literária da analepse (recordação) e prolepse (antecipação). A analepse ajuda à memória do leitor clarificando e aumentando o conhecimento do leitor (Cfr., Marcos como relato, p.73) como no caso de Mc 3: 22-29 em se afirma que Jesus está possuído de Satanás, mas Jesus objecta que se fosse de Satanás estaria contra Satanás, ficando o reino divido. Deste modo os leitores recordam o confronto anterior de Jesus com Satanás no deserto (Mc 1, 13), aprofundando assim esse episódio e considerando-o de um novo modo (Cfr., Marcos como relato, p.73). No que diz respeito à prolepse temos que o narrador conta um acontecimento que acontecerá depois. Assim temos que a narração remomorativa da morte de João Baptista a mandato de Herodes em Mc 6: 14-29, antecipa a morte de Jesus por mandato de Pilatos em Mc 15: 15. Outro claro exemplo de uma prolepse de estilo profético, isto é, a profecia utilizada como antecipação, em São Marcos são os três relatos da Paixão em Mc 8: 31; 9: 31 e 10: 33 (Cfr., Marcos como relato, p.73)
A prolepse e a analepse são duas técnicas literárias que ligam a narração, isto é, ajudam à sua unidade e ao mesmo tempo fazem avançar a própria narração para a frente ou para trás, criando suspense e mistério que só será totalmente compreendido quando de facto os acontecimentos tiverem lugar (Cfr., Marcos como relato, p.73.)
Em quarto lugar consideramos a progressão narrativa a 2 passos utilizada por São Marcos, consiste em na utilização de dois elementos, proposições, pares de orações e até a estrutura de um episódio, em que o segundo elemento confirma o primeiro. São exemplo desta técnica a referência à hora em Mc 1: 31: «À noitinha, depois do sol-pôr, trouxeram-lhe todos os enfermos e possessos». Neste passo a referência ao sol que se põe confirma o primeiro elemento da frase, denotando assim o final do sábado que era o momento em que as pessoas podiam voltar a viajar e, consequentemente, já podiam pedir a Jesus que os curasse (Cfr., Marcos como relato, p.74). Um exemplo de um episódio cuja progressão é feita a dois passos é o da cura do cego de Betsaida em Mc 8: 22-26. Este célebre episódio apresenta-nos um cego que é curado por Jesus uma primeira vez mas o cego ainda que recupere a vista não vê claramente. Então Jesus toca-o de novo e passa a ver de modo perfeito todas as coisas, pois que antes apenas via homens como árvores.
A progressão a dois passos conduz o leitor a um segundo olhar que clarifica e acentua determinado aspecto (Cfr., Marcos como relato, p.75). O evangelho no seu conjunto pode ser visto como estando estruturado num esquema progressivo a dois passos, pois, como já referimos, o primeiro versículo do primeiro capítulo apresenta-nos Jesus Cristo como o Filho de Deus (Mc 1: 1), algo que será confirmado em Mc 15: 39 quando o centurião exclama que «verdadeiramente este homem era Filho de Deus» (Cfr., Marcos como relato, p.75). A progressão a dois passos ao mesmo tempo está em ordem à revelação de Jesus que em São Marcos é progressiva. O discípulo e o leitor, quem sabe futuro discípulo, é chamado a encetar um caminho de descoberta sobre quem é Jesus, ainda que isso já lhe seja devidamente dito, como petição de princípio, no inicio do evangelho. A progressão a dois passos conduz a uma visão mais clara e compreensiva de Jesus em clara sintonia com a própria intenção do relato marcano.
Outros aspectos particulares em São Marcos poderiam ser relevados, os episódios progressivos em séries de três; o elevado números de perguntas feitas no Evangelho, sendo a maioria das quais dirigidas a Jesus sem que estas obtenham d’Ele uma resposta cabal; as parábolas, as citações da Escritura ou a ironia marcana, mas consideramos que no conjunto do evangelho as quatro características referidas anteriormente são as mais relevantes.

Sem comentários:

Enviar um comentário