sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Estudo de uma Sequência Narrativa

Mc 6, 30 – 8,21

Aluno: Paulo Pires

1. Identificação e justificação da sequência.

2. Aplicação do esquema quinário a um micro-relato.

3. Classificação da intriga e das personagens.

4. Enquadramento do micro-relato.

1. Quando olhamos para os relatos evangélicos, notamos que a divisão mediante capítulos e versículos não constitui uma verdadeira divisão quanto ao seu conteúdo. Verificamos, isso sim, que a totalidade do relato é formada por unidades narrativas mais pequenas, à maneira de pequenas “histórias”, que formam muitas vezes um conjunto com uma temática. Às pequenas unidades mínimas de sentido dá-se o nome de micro-relato, e a um conjunto de micro-relatos unidos por uma temática ou uma personagem em comum dá-se o nome de sequência.

Tendo em conta estes critérios, o excerto Mc 6, 30 – 8, 21 constitui uma sequência. Nela podemos encontrar uma série de micro-relatos, dez ao todo: a) 6, 30-33; b) 6, 34-44; c) 6,45-52; d) 7, 1-16; e) 7, 17-23; f) 7, 24-30; g) 7, 31-37; h) 8, 1-10; i) 8, 11-13; j) 8, 14-21. Estas unidades narrativas constituem micro-relatos pois possível detectar variação quanto aos seguintes elementos: Tempo, espaço, personagens e tema. E todas estão agrupadas pela temática ou do pão ou das multidões.

2. Para aplicação do esquema quinário, resolvemos escolher o micro-relato de Mc 6, 34-44:

I. Situação inicial: Como situação inicial, isto é, a descrição neutral do início do acontecimento entendemos considerar os vers. 34-36. Nestes primeiros versículos encontramos os discípulos que pedem a Jesus que despeça a multidão, para que possam ir buscar alimento às aldeias e campos. Na verdade, ainda não encontramos aqui nenhuma descrição de algo problemático.

II. : Como nó, ou seja, a descrição de uma situação de tensão/problema que penetra o micro-relato temos os vers. 37-38. Encontramos agora, pois, a descrição da situação problemática. Seguindo a ordem de Jesus “Dai-lhes vós mesmos de comer”, os discípulos apenas encontraram uma pequena parte, a saber, cinco pães e dois peixes, claramente insuficientes para uma multidão.

III. Acção transformadora: Como acção transformadora, podemos considerar aquela em que muda a situação inicialmente descrita. Localizamos esta etapa nos vers. 39-41. Esta acção assume aqui um carácter especial porque esta é um dos exemplos em que a acção transformadora de Jesus acontece por palavras e gestos. Por palavras assinalamos a ordem para que a multidão se sentasse na relva, bem como as palavras da oração de bênção, concentradas no verbo euvlo,ghsen – “abençoou”. Por gestos, destacamos, o gesto de tomar o pão e o peixe, o gesto de erguer os olhos ao céu e, por último, a entrega do alimento aos discípulos para que o distribuíssem pela multidão.

IV. Desenlace: Como resolução da situação de tensão, podemos considerar a descrição “Comeram até ficarem saciados”, do vers. 42.

V. Situação final: A situação final relata-nos o novo estado adquirido, diferente do estado inicial, pela resolução da situação tensional. No relato em questão, assinalamos os vers. 43-44. Estes versículos oferecem-nos informações que dão conta do resultado da acção transformadora, que ultrapassam a simples resolução da tensão. Aqui encontramos a descrição de que sobejaram doze cestos de pão, e de que a multidão era constituída por cinco mil homens.

3. Quanto à classificação da intriga, esta pode ser do tipo intriga de resolução, quando existem uma situação problemática/tensional que acaba por se resolver (por acção de Jesus), ou do tipo intriga de revelação, quando o acontecimento relatado contribui para a revelação da identidade de Jesus. Ora, quanto ao micro-relato anterior, podemos claramente destacar uma intriga de resolução: temos uma situação problemática consignada na ordem de Jesus aos discípulos para que fossem eles a alimentar a multidão, vendo-se estes apenas com poucos recursos: cinco pães e dois peixes apenas. Porém, podemos também apontar uma componente revelacional, já que um relato evangélico raramente se apresenta de forma unilateral. Os próprios sinais miraculosos de Jesus, neste caso a multiplicação dos pães e dos peixes, contribuem para ir revelando a identidade deste Jesus, apresentado pelo mote inicial do Evangelho “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1, 1).

Sobre a classificação das personagens, estas podem ser planas, se não sofrem transformação significativa durante o relato, ou redondas, se, pelo contrário, a acção de Jesus as transforma. No presente relato, apesar de escassas as informações sobre o estado final das personagens, podemos admitir que tanto os discípulos como a figura colectiva da multidão são personagens redondas: são mudadas por Jesus. Podemos ver isto, de certo modo, na afirmação do vers. 42: “Todos ficaram saciados”, bem como através de uma outra informação que encontramos já fora deste relato, em Mc 6, 52 “pois ainda não tinham entendido o que se dera com os pães: tinham o coração endurecido”.

Uma última nota quanto à classificação das personagens como opositoras ou adjuvantes, parece-nos que, no relato analisado, esta classificação não possui uma aplicação razoável.

4. Para enquadrar um micro-relato é necessário fazer um levantamento dos vários elementos que nos ajudam a caracterizá-lo em termos de espaço e de tempo. Assim, temos:

a) Espaço

Neste micro-relato, as referências espaciais são abundantes e com evidente carga sémica. A primeira informação, oferecida pelos relatos anteriores, mostra que o acontecido decorre em terra de Israel, isto é, em terra de fiéis e não de pagãos, como encontraremos mais adiante em Mc 8, 1-9. Esta informação, que ressalta um claro contraste de espaço geográfico, pretende significar que esta Boa Nova de Jesus não tem os fiéis judeus como destinatários; ela também há-de abrir-se aos pagãos. Esta diferença ressalta, pois, uma mudança política de espaço, que se traduz também numa mudança religiosa.

Outras informações que este relato nos oferece sobre o espaço da acção, são: em primeiro, esta decorre no exterior, provavelmente junto à praia onde Jesus e os discípulos desembarcaram, em segundo, podemos observar uma interessante mudança de cenário. De facto, quando os discípulos abordam Jesus para despedir a multidão, uma das razões apontadas é que aquele lugar é e;rhmo,j, deserto; mas quando Jesus ordena que a multidão se sente, encontramos a informação de que se sentaram evpi. tw/ clwrw/ co,rtw, sobre a erva verde. Podemos relacionar esta mudança com a descrição inicial do sentimento de Jesus ao ver a multidão: “teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor”. Esta relação imediatamente faz recordar a imagem paradisíaca, referida no Salmo 22 (23): “O Senhor é meu pastor: nada me falta. Em verdes prados me faz descansar (…) Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos”. Jesus aparece-nos como o Bom Pastor, que saciam verdadeiramente as ovelhas: “Comeram até ficarem saciados”.

Podemos ainda referir a existências de linhas predominantemente horizontais, com Jesus e os discípulos rodeados pela multidão, linhas essas que se convertem, em certa medida, em linhas circulares, denotando uma maior intimidade, mesmo com a multidão, uma vez que o contexto de refeição para isso contribui.

b) Tempo

Quanto às referências temporais, o relato aponta-nos duas, de igual significado e no mesmo vers. 35: 1) w[raj pollh/j genome,nhj, sendo tarde; 2) w[ra pollh,, é tarde. Se, por um lado, encontramos nestas referências uma dimensão factual, indicando-nos a hora aproximada do dia em que decorreu o evento do micro-relato, por outro lado, a repetição das expressões quase idênticas, ao menos semanticamente, adquire um valor monumental. Este acontecimento, com a referência temporal intensificada pela repetição, pode funcionar, em termos narrativos, como uma prolepse, através da qual o narrador antecipa aquele derradeiro milagre que Jesus fez com o pão, descrito mais adiante no capítulo 14: a oferta do seu Corpo (vers. 22) na véspera (vers. 17) da sua Paixão.

Quanto à manipulação do tempo narrativo, encontramos quase todos os tipos de manipulação. Na verdade, desde o início do micro-relato até ao início do vers. 38 encontramos uma manipulação do tipo cena, em que se verifica uma coincidência entre o tempo da história e o do relato. Todavia, já a segunda parte do versículo anteriormente referido consideramos como sendo um sumário. Encontramos apenas a referência “Depois de se informarem…”, sem que haja uma descrição de como isso aconteceu. Aqui, o tempo do relato é menor que o da história.

A narrativa prossegue em forma de cena, até ao versículo 42, que também consideramos como um sumário. Relativamente aos últimos dois versículos, consideramo-los como pausas descritivas, nos quais encontramos uma descrição de elementos que auxiliam o leitor a notar a grandiosidade do acontecimento. Corresponde, neste caso, a um tempo morto no que toca à história (não ao relato).

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