sábado, 25 de setembro de 2010

Análise Narrativa 1

Comparação dos relatos Sinópticos de Mt 8: 23-27; Mc 4: 35-41; Lc 8: 22-25


Mt 8:23-27

«23Depois subiu para o barco e os discípulos seguiram-no. 24Levantou-se, então, no mar, uma tempestade tão violenta, que as ondas cobriam o barco; entretanto, Jesus dormia. 25Aproximando-se dele, os discípulos despertaram-no, dizendo-lhe: «Senhor, salva-nos, que perecemos!» 26Disse-lhes Ele: «Porque temeis, homens de pouca fé?» Então, levantando-se, falou imperiosamente aos ventos e ao mar, e sobreveio uma grande calma. 27Os homens, admirados, diziam: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?»

Mc 4: 35-41


«35Naquele dia, ao entardecer, disse: «Passemos para a outra margem.» 36Afastando-se da multidão, levaram-no consigo, no barco onde estava; e havia outras embarcações com Ele. 37Desencadeou-se, então, um grande turbilhão de vento, e as ondas arrojavam-se contra o barco, de forma que este já estava quase cheio de água. 38Jesus, à popa, dormia sobre uma almofada. 39Acordaram-no e disseram-lhe: «Mestre, não te importas que pereçamos?» Ele, despertando, falou imperiosamente ao vento e disse ao mar: «Cala-te, acalma-te!» O vento serenou e fez-se grande calma. 40Depois disse-lhes: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» 41E sentiram um grande temor e diziam uns aos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?»

Lc 8: 22-25

«22Certo dia, Jesus subiu com os seus discípulos para um barco e disse-lhes: «Passemos à outra margem do lago.» E fizeram-se ao largo. 23Enquanto navegavam, adormeceu. Um turbilhão de vento caiu sobre o lago, e eles ficaram inundados e em perigo. 24Aproximaram-se dele e, despertando-o, disseram: «Mestre, Mestre, estamos perdidos!». E Ele, levantando-se, ameaçou o vento e as águas, que se acalmaram; e veio a bonança. 25Disse-lhes depois: «Onde está a vossa fé?» Cheios de medo e admirados, diziam entre eles: «Quem é este homem, que até manda nos ventos e nas águas, e eles obedecem-lhe?»


Nos três relatos o narrador é extradiegético e nos três relatos encontramos a narração do mesmo acontecimento, ou seja, que Jesus entrou num barco com os seus discípulos para atravessar para o outro lado do lago. Ora, nesta travessia levanta-se uma tempestade, mas Jesus dorme. Os discípulos aflitos acordam-no com medo de perecerem. Jesus dirige-lhe uma palavra de confiança e de apelo à sua fé. No fim a tempestade acalma e todos ficam espantados com o sucedido e perguntam de si para si: «quem é este que até o mar e o vento lhe obedecem». Importa salientar que as personagens nos três relatos são quase as mesmas – Jesus e os discípulos – com a diferença em Marcos que coloca outras embarcações a fazer a travessia com Jesus, embora não nos seja indicado o número quer de embarcações quer de pessoas a bordo.
Mas se do ponto de vista do facto narrado esta história não é substancialmente diferente nos relatos sinópticos, no entanto do ponto de vista do discurso, ou seja, de como é narrada os três relatos denotam diferenças entre si. São estas diferenças que importa considerar tendo como base o método quinário da análise narrativa. Assim:

a. Situação inicial: O relato de Mateus é o mais breve na descrição da situação inicial. «Depois subiu para o barco e os discípulos seguiram-no». Após uma consideração temporal indeterminada (depois) diz que Jesus e os discípulos subiram para o barco. São Marcos não é tão “minimalista” na descrição da situação inicial: «Naquele dia, ao entardecer, disse: “Passemos para a outra margem.” Afastando-se da multidão, levaram-no consigo, no barco onde estava; e havia outras embarcações com Ele». Existe uma diferença importante relativamente a Mateus, é que Marcos precisa a dimensão temporal considerando que a acção decorre num dia determinado e numa hora determinada (ao entardecer) ao mesmo tempo são dados mais três factos: Jesus e os discípulos deixam a multidão; Jesus fala e seguem Jesus e os seus discípulos outras embarcações. Relativamente a São Lucas a sua descrição inicial é muito próxima de Marcos: «Certo dia, Jesus subiu com os seus discípulos para um barco e disse-lhes: “Passemos à outra margem do lago.” E fizeram-se ao largo». Mas se Marcos precisa o dia e a hora, São Lucas deixa indeterminada a questão do tempo por meio da expressão «certo dia». Do ponto de vista das personagens há uma diferença no relato de Marcos que coloca outros barcos a fazer a travessia acompanhando o de Jesus. Os três relatos, sendo o de Marcos o mais pormenorizado, buscam o efeito do real.


b. Nó: O nó é o mesmo nos três relatos e diz respeito à tempestade que se levanta enquanto Jesus dorme “despreocupadamente”. Em Mateus temos: «Levantou-se, então, no mar, uma tempestade tão violenta, que as ondas cobriam o barco; entretanto, Jesus dormia»; Marcos: «Desencadeou-se, então, um grande turbilhão de vento, e as ondas arrojavam-se contra o barco, de forma que este já estava quase cheio de água. Jesus, à popa, dormia sobre uma almofada.». São Lucas: «Enquanto navegavam, adormeceu. Um turbilhão de vento caiu sobre o lago, e eles ficaram inundados e em perigo». O relato de Marcos mais uma vez é o mais extenso e descritivo referindo que as ondas eram de tal modo fortes que já o barco estava cheio de água e Jesus dormia sobre uma almofada na popa do barco onde a força das ondas mais se deveria fazer sentir. Esta parece uma cena quase surreal, pois com tanta agitação e água a encher o barco perguntamos como é que Jesus ainda consegue dormir. O que se quer dizer? Pois aqui o efeito do real, pelo menos no que diz respeito a Jesus, soa estranho.


c. Acção Transformadora: A acção transformadora nos três relatos é espantosa e curiosa e tem o seu início quando os discípulos se aproximam de Jesus para o acordarem. Em Mateus: «Aproximando-se dele, os discípulos despertaram-no, dizendo-lhe: “Senhor, salva-nos, que perecemos!» Disse-lhes Ele: «Porque temeis, homens de pouca fé?”»; Em Marcos: «Aproximando-se dele, os discípulos despertaram-no, dizendo-lhe: “Senhor, salva-nos, que perecemos!» Disse-lhes Ele: «Porque temeis, homens de pouca fé?”»; Em Lucas: «Aproximaram-se dele e, despertando-o, disseram: “Mestre, Mestre, estamos perdidos!”». Notamos que a acção transformadora começa quando os discípulos face ao perigo e com medo se aproximam de Jesus e pedem que os salve, colocando-Lhe uma pergunta radical e decisiva e que tem a ver com a sua salvação, por isso no caso de Mateus Jesus é chamado de «Kyrios», o mesmo título usado para falar de Deus enquanto em Marcos e Lucas é chamado de Mestre/Rabi. Importa salientar que Jesus ainda antes de realizar o sinal apela à fé deles, apela para que tenham fé n’Aquele que está diante deles. De notar uma diferença subtil mas importante entre o relato de Lucas e dos outros sinópticos sobre este ponto. Pois se em Mateus e Marcos o sinal é posterior à interpelação da fé, todavia em São Lucas Jesus primeiro realiza o sinal, acalmando a tempestade, e depois pergunta onde está a fé dos discípulos.


d. Desenlace: O desenlace nos três relatos diz respeito ao sinal que Jesus dá quando os salva acalmando a tempestade. Em Mateus: «Então, levantando-se, falou imperiosamente aos ventos e ao mar, e sobreveio uma grande calma.»; Marcos: «Ele, despertando, falou imperiosamente ao vento e disse ao mar: “Cala-te, acalma-te!” O vento serenou e fez-se grande calma»; Lucas: «E Ele, levantando-se, ameaçou o vento e as águas, que se acalmaram; e veio a bonança».


e. Situação Final: Nos três sinópticos a situação final é a mesma, a saber: os discípulos ficam espantados, admirados, até com medo (como relata Lucas) provavelmente no sentido do temor de Yhwh e acabam fazendo uma pergunta final que dá a tónica à intriga deste relato como sendo de resolução e simultaneamente de revelação. Pois esta pergunta final comum aos três relatos: «Quem é este homem…», uma pergunta retórica, é aquela que nos é feita a nós leitores, é a pergunta e resposta à questão que Jesus coloca aos discípulos sobre a fé.

Podemos ainda dizer que nos três relatos a personagem redonda é Jesus, são dos discípulos. Mas todos os outros que iam nas outras embarcações são personagens colectivas planas. Estas narrativas visam a revelação de Jesus como Kyrios/ Senhor (em Mateus); Mestre/Didaskalós (Marcos) e em Lucas como Mestre/Rabi/Epistatalós.

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