Lendo os Sinópticos
práticas de leitura teológica
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
Lucas escreve um “Evangelho”
Um dos pontos mais marcantes em Lucas e que sobressai de modo especial, como seu rasgo mais marcante, é o tema da visão. Acontece de forma exemplar no episódio de Zaqueu (Lc 19,1-9) que “quer ver Jesus” num verdadeiro sentido relacional. Essa relação acontece, de facto, e toca a sua casa, e a sua pessoa, resultando na sua conversão. Também os pastores (Lc 2,8-20) foram “a Belém ver o que aconteceu” e “depois de terem visto, começaram a divulgar” o que “o Senhor [lhes] deu a conhecer”, “glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido”. Este é outro caso em que Lucas claramente pretende indicar o dinamismo de uma “visão” profunda de contacto e relação: aquela que leva ao conhecimento interior, que despoleta a conversão verdadeira à fé. Tudo isto em contraste evidente com os acontecimentos da manhã de Páscoa (Lc 24,1-12), primeiro com as mulheres e depois com Pedro que “viu apenas os lençois”: não poderam crer até que a manifestação radical do Ressuscitado se faz presente (Lc 24, 36-49): “Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu!” É a confirmação do dinamismo da “visão”, o movimento da densificação da fé confirmada na experiência de Jesus, já atestada na revelação aos discípulos em Emaús (Lc 24,13-35).
Esta densidade dada no capítulo 24 pelos acontecimentos do Domingo de Páscoa (da Ressurreição à Ascensão), com o qual termina o Evangelho, faz também realçar o valor do “Hoje” com um pendor salvífico profundo, derivado da hermenêutica pascal sobre o Mistério de Jesus.
Mais, a narrativa deste relato assume as características de um micro-evangelho. Esse evangelho de Emaús desenvolve-se à volta de uma questão. Um percurso que foi de Jerusalém a Emaús, após a viragem que trouxe aquele Viandante, tornou-se de Emaús para Jerusalém. Deu-se uma viragem na questão aparente de Jesus não ter cumprido as suas esperanças. Afinal, a grande questão era os discípulos não “verem” Jesus: não O terem descoberto a não ser passando por esse itinerário da fé, um “percurso-evangelho” – Caminho, Palavra, Casa, Mesa – o processo que leva do “ver” ao crer. Portanto, há uma abertura pessoal que sustenta a visão, há um ver que só o crer permite. “Kratéo” – “impedir” – descreve o endurecimento interior dos discípulos e que, geralmente atribuído aos opositores, mostra aqui a descrença e a confusão que habita os discípulos. “Guinósko” vai exprimir esse “reconhecer” fruto da relação, da experiência de Jesus. No fundo, os dois verbos falam-nos sobre o efeito Jesus em cada personagem, de rejeição ou de adesão.
Contudo, em Emaús ainda não nos é apresentado como se passa do “crer” ao “ver”, apenas e sim se comunica a mistagogia do mistério Caminho-Palavra-Casa-Mesa. No Evangelho vemos, de facto, que o caminho é o lugar onde se descobre Jesus, pois que o caminho nos obriga a deixar tudo para trás para vivermos uma experiência de fé como Abraão, que deixa a terra e os parentes. A Bíblia, como as grandes literaturas, é um conjunto de livros de “caminho”: a economia do caminho obriga o caminhante a expor-se. Também Jesus não fundou uma escola física, mas um caminho de vida e agora isso é fundamental para quem quer ser seu discípulo.
Este episódio ilustra retoma igualmente a questão da Palavra: o leitor começa por ser no início do relato acompanhado por Jesus que lhe explica a Palavra de Deus sobre Si próprio. É Cristo que explica Cristo e, por isso, lemos as Escrituras cristologicamente. Curiosamente, é aí que o leitor é deixado sem essas “explicações”, ficando a saber menos que aqueles discípulos: também, o leitor tem de se tornar discípulo para saber. Só a partir daqui é que Jesus se manifestará, como faz mais adiante, cumprindo o seu “preceder-vos-ei a caminho da Galileia”. O entrar na casa passa a deixar Jesus como protagonista: é um momento de intimidade, em que Jesus forasteiro entra na Casa, elemento que antecede o momento de viragem: a Mesa. Este é para Lucas o lugar decisivo para conhecer Jesus, para resolver o problema do crer, para aquele que é discípulo.
A arquitectura deste capítulo tem uma teologia muito forte, o encontro com o Ressuscitado dá-se antes que o Dia de Páscoa termine, é o último gesto do Ressuscitado: os olhos abertos pela fé.
Outro ponto, que podemos referir é o valor assumido por Nazaré (Lc 4,16-30 como lugar importante para a apresentação da Pessoa de Jesus, em contraste com Mateus, que ao se preocupar com a questão davídica, prefere Belém. Nazaré é, portanto, o lugar da “Unção”, do início da vida pública de Jesus. É a passagem onde se apresentam muitas questões que serão desenvolvidas ao longo da vida de Jesus, e onde se prenuncia o seu desfecho, assumindo particular função proléptica no Evangelho: após a leitura, fixando-se todos os olhos nele, o próprio Jesus afirma-se como Ungido pela realização da Palavra e apela para si todo o relevo messiânico do título de Profeta. De facto, no texto lucano, tanto a multidão como os que eram curados, admitiam Jesus como um Profeta. Introduzindo a questão de Jesus ser “mais um profeta” ou ser o Profeta escatológico, o Novo Moisés, vemos que Jesus assume como seu o destino que levaram os profetas, pois também Ele, trazendo a Palavra de Deus, compreende estar à espera da mesma rejeição. Contudo, não dizendo Ele traz a evidência do Novo Moisés, mas sem precisar de Aarão a seu lado, pois Ele próprio é “poderoso em obras e palavras”.
Em Lucas há uma forte introdução de elementos à volta da Mesa. Há uma teologia “alimentar” construída com base no desempenho das circunstâncias do “comer”. Este tema é retomado pelo Apocalipse, sem esquecer as referências do Antigo Testamento, Deuteronómio e Números. De facto, os Judeus ainda hoje têm um forte vínculo litúrgico à mesa e este é um laço essencial entre eles. Há uma particularmente forte relação entre religião e a dimensão da “mesa” que era tomada como fundamental na família e daí ao tecido social. O grande impacto do Templo na religião, tornara-o a fonte mais concreta da forma de estruturar toda a vida dos hebreus, de especial correspondência entre os “ritos oficiais” e os preceitos à “mesa” e na vida diária. Daí que os saduceus tivessem enorme influência. Os essênios, como dissidentes, tentavam particularmente reconstruir a visão judaica noutros quadrantes mais exigentes, mas a maior parte dos seus símbolos está também nas leis da “mesa”. Os fariseus, sendo os leigos, que “separados” se esforçavam por viver justamente, mimetizavam exponencialmente à mesa essa ritualidade própria do Templo, estruturando assim a vida e a forma de louvor em sinal de fidelidade.
Em Lucas vai ganhar esta dimensão um relevo apropriado pois só ele coloca três particulares passagens em que Jesus foi convidado à “mesa” (Lc 7,36.11,37.14,1). Isto porque para Lucas eram importantes elementos de revelação de Pessoa de Jesus, e que marcam a sua cristologia e a forma como a compreendemos: é o caso de Zaqueu, já referido, cuja conversão se dá na “mesa”.
Na passagem de Lc 14,7-14, Jesus torna-se como um mestre de etiqueta , e pelo banquete explica o Reino. Fazer isto que Jesus propõem é visto com olhos de espanto a nós, pois nos parece perverter o significado das nossas relações e das razões porque alguém dá um banquete. Ao contrário do que sucedia com João Baptista ao se marginalizar com outros alimentos alternativos Jesus come e bebe, mas altera a concepção organizativa dando-lhe a sinaléctica do Reino, o que era uma autêntica revolução, imagem da revolução operada com a instauração do Reino da Graça, como percebemos nas origens humildades dos convidados e na escolha do lugar mais recatado.
Esta novidade é também certamente um factor da morte de Jesus: a proximidade e a relação de misericórdia. Todos esperavam a misericórdia de Deus profetizada pelos profetas, mas nunca nesta forma. A experiência medicinal de uma proximidade aparentemente perigosa, pelo risco de contágio, manifestará uma viragem fundamental na visão da acção misericordiosa de Deus. A inclusão dessa relação na mesa era também contrastante com o significado exclusivista que tinha uma refeição: não eram abertas a não ser àqueles com quem se tinha intimidade. Para Jesus a Mesa há-de ser o lugar da inclusividade, como lugar da acção de proximidade e da Salvação de Deus.
A passagem da “mesa” onde surge a mulher (Lc 7,36) contém também especial luz sobre o seu significado: Jesus aceita um convite pois considera-o verdadeiro à vista da rapidez com que o aceita. Mas face à proximidade da pecadora o anfitrião acaba por julgar mal Jesus, duvidando do que todos achavam dele, ao considerá-lo profeta. Mas Jesus é que assume o comando das informações principais, como permite Lucas (pois Ele é Quem sabe) comparando a verdadeira hospedagem que afinal recebeu Jesus: não a do fariseu, mas a da mulher que o amou verdadeiramente como provou ao dar-lhe toda a proximidade possível, quase eroticamente. Fica a pergunta de quem foi Jesus hóspede? A resposta é de quem O acolhe verdadeiramente: o pecador arrependido e para eles é que assim compreendemos que vem Jesus. Em Lucas, o leitor tem de se assumir como pecador: “Porque muito amou, muito se-lhe perdoa”. Não é a desculpabilização como se nenhum mal fora feito, é a questão do perdão, do amor: “a quem mais se perdoou foi o que amou mais”. Esta passagem serve ainda para fazer sobressair outro aspecto do Evangelho lucano: “Quem é este que perdoa pecados?” Este é um evangelho de perguntas. De facto,isto permite a Jesus sair “reforçado” de um banquete que correu mal, pois “perdoar os pecados” era efectivamente prerrogativa divina.
A densidade da cristologia lucana está contudo mais condensada nos seus primeiros dois capítulos, onde é vigorosa. No seu desenvolvimento passa a ser uma cristologia mais tímida e mais questionada.
Assim é no chamado “evangelho da infância” que se pode extrair muito do essencial da narrativa. Um dado concreto é o dos “cânticos” lucanos como o de Maria (Lc 46-55) que surge recolhendo várias referências do Antigo Testamento formando-lhe um autêntico subtexto de compreensão: é a fé de Israel que lhe serve de dicionário espiritual e ideológico. É fornecendo as palavras eulógicas usadas nessa espiritualidade bíblica e tradicional que se sugere ao leitor o facto das novas circunstâncias, da nova performance, dos eventos de novidade serem a resposta às antigas promessas. É a concentração num indivíduo, como ponto de chegada, que expressa toda a expectativa messiânica do Povo, face ao advento de Jesus.
A organização do “Magnificat” apresenta-nos concretamente que se deseja uma vasta abrangência face às realidades do Povo de Israel, ao serem explorados três três campos semânticos: o religioso (Lc 1,46-50) com o recurso aos titulos consagrados ao Senhor Deus; o socio-político (1,50-53) onde temos o contraste entre soberbos e humildes; e o étnico (1,54-56) onde Israel contrasta com a descendência de Abraão, muito mais abrangente.
Percebemos uma linguagem heterogénea, mas colocada num só tecido, que condensa toda uma densidade literária, mostrando como todo fica diferente depois do “Magnificat”. É uma verdadeira reviravolta na acção de Deus e daquele Mundo que parecia estável: de ricos e poderosos no comando, de soberba étnica. A manifestação de Deus dá-se tornando diferente o mundo conhecido. Portanto, o “Magnificat” antecipa a função do próprio evangelho que é proclamar Jesus como a mutação desejada por Deus na História dos homens. O “Magnificat” tem essa densidade escatológica da plenitude em Cristo, de Deus como realidade última da História, que a rescreve totalmente com o dom da sua Salvação. É uma nova perspectiva, trancendente e triangular, onde Deus participa da História, revolvendo os intervenientes históricos tradicionais. As palavras do “Magnificat” ficam a soar ao longo do evangelho pois são chaves que ele vai recuperando e desenvolvendo.
Lucas introduz nesses primeiros capítulos o método da síncrise que aproveita em toda a Obra Lucana. Nesta parte do evnagelho, aproxima João e Jesus e, por isso, surge o texto do Benedictus (Lc 1,68-79). Desde o primeiro anúncio, que foi de João, as duas personagens irão crescendo até que se encontrem no terceiro capítulo. Há, efectivamente, uma grande densidade proléptica, como vemos no recurso do tempo aoristo grego, fazendo sobressair uma realização consumada, algo que já começou na História, mesmo que ainda não esteja realizado, concluído. As duas partes do Benedictus mostram primeiro (1,68-75) a densidade que a Salvação ganha na História e depois (1,76-79) o significado histórico de João, aquele que prepara o caminho à visitação messiânica. É um grupo poético importante (talvez até pré-cristão) que manifesta o reconhecimento da chegada do tempo da Salvação. Esta salvação em Lucas, mais que os sinais de cura, é o perdão dos pecados e a sua instauração. O termo “afesis” – o libertar, a remição – passa a ser usado por Jesus (como em Lc 7,48) quando nunca surge no Antigo Testamento. De realçar a ideia de Paz bem presente aqui e que era especial pregorrativa sacerdotal, segundo os Números, o que manifesta a implicação sacerdotal de Jesus na benção da paz. Sem a reconciliação não há paz em Deus e a sua intervenção é necessária: é a mesma viragem que Deus introduz na História, e que une a Paz à experiência da Salvação.
Outro cântico importante é aquele colocado junto ao Nascimento de Jesus na voz dos Anjos (Lc 2,14). É mais breve e tem origem na perícope do versículo 10: “euangelizomai” transmite plenamente a ideia teológica de anúncio e “boa nova”. Jesus é aqui chamado Salvador pela única vez. É toda a densidade captada pelo leitor da atribuição de um título que pertencia ao Imperador a alguém ainda não mais do que um menino, pois está a acontecer a viragem causada pela irrupção de Deus na História. O recurso da palavra Hoje, de forma bem clara, manifesta a sua importância: a Salvação é de Hoje, pode-se “ver”, colocando nestes versículos à volta do Nascimento, uma plástica palpável pela “visão”. Tal como a Páscoa, todos os acontecimentos dão-se num só dia, um Hoje, o que concorre para o sentido proleptico destes primeiros capítulos face ao evangelho. Jesus é o “Cristo Senhor”: “Kyrios”, porque é uma citação implícita de Isaías (1,3) em relação à manjedoura. No “Magnificat” (Lc 1,47), Deus é o “meu Salvador”. Depois, Zacarias proclama-o como “Corno da Salvação” (Lc 1,69). Mas aqui (Lc 2,11), Jesus é aclamado Salvador pelas palavras de um actor “divino”, com que Lucas sabe transmitir essa credibilidade transcendente.
De facto, Lucas coloca no seu texto uma dimensão extraordinária face aos outros evangelhos. Também Simeão no Templo (Lc 2,29-32) proclama a “Paz” num “Agora”, porque os seus “olhos viram a Salvação”, “Luz para as nações e glória de Israel”, reforçando as anotações teológicas já apresentadas. Torna-se claro observar que todos os “cantores” são personagens que “viram” e cantaram como Simeão.
A citação mais longa de Isaías, nos evangelhos está em Lucas (Lc 3,4-6): “toda a carne verá a salvação de Deus”. Este é, também, um evangelho da Salvação, colocando bem no centro a Pessoa de Jesus. O Episódio da viúva de Naim (Lc 7,16) declara explicitamente, “no meio de nós apareceu um grande profeta”, com o testemunho de todos os sinais de curas e ressurreições que acompanham Jesus, requerendo o título de “Benfeitor Divino”.
Na “vida pública” apresentada por Lucas há uma cristologia que se vai formando e corrigindo. Profeta é um título de Jesus mas não é suficiente para defini-lo completamente. Passa uma galeria de personagens que precisam de curas “de saúde”. Estão em função da principal personagem que é Jesus, caracterizando o seu ministério terreno de Jesus, esclarecendo um aspecto sobre Ele. Já nos Actos dos Apóstolos serão outros elementos que a desempenhar essa função retórica, como forma de persuasão. Assim o importante da revelação de Jesus não são as curas operadas, que até desaparecem no livro dos Actos, mas têm um função retórica de persuasão para levar os corações a aceitar o mais difícil: não são as curas, pois conheciam-se outros curandeiros, mas que Jesus “perdoa os pecados”. Esse elemento é que é a grande dificuldade à fé, mas é fundamental: “quem é este que perdoa os pecados?” A relação entre o Evangelho e os Actos na Obra Lucana é tornar claro de que é Jesus que salva a Humanidade na sua estrutura profunda, num novo patamar do Humano.
Há, realmente, uma contraposição simbólica em Lucas. A parábola do cego que guia outro (Lc 6,39-40) indica concretamente que “o discípulo não está acima do mestre, mas o discípulo bem formado será como o mestre”. Adiante concretiza(Lc 24,46-47) que estando o Povo fechado por andar convencido de si mesmo, Jesus acolheu aqueles que procuravam perdão: somos chamados a identificar-nos com o pecador, tal como o Messias Jesus foi morto como pecador: paradoxalmente, salva-nos, tornando-se um de nós. “Havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém”. É esta a Salvação de Jesus, a conversão para o perdão dos pecados. Com o exemplo de Pedro, percebemos que a conversão profunda se deu com a identificação de si próprio como pecador: é quando não colocamos a sede da santidade em nós, quando nos mostramos carentes de perdão, aí começamos a aventura de sermos discípulos. A focalização na figura do pecador serve de testemunho para o caminho que Lucas propõe ao leitor.
Faltam ainda outros dois elementos essenciais em Lucas, pelo seu contributo teológico: o Templo e a Casa.
O templo dos cristãos de hoje é mais uma Casa e uma Assembleia: “ekklesia” é um paradigma diferente face aos Judeus. O Templo para os hebreus era o lugar da habitação divina, o sinal visível de Deus invisível, era o ícone da santidade divina e da santidade do Povo eleito na Aliança. Esta santidade era o ideal do judaísmo: ser santo como o Templo. Por esta razão, surgiram todas aquelas minudências nas regras, tudo para esclarecer no quotidiano o que é puro e impuro, rejeitando e procurando afastar-se de tudo o que é híbrido.
O termo santidade derivava etimologicamente do conceito de “separação”. A santidade requeria toda uma integridade física, fisiológica e espiritual: mas nunca somente a última. Para entrar no Templo e ter o corpo como receptáculo perfeito para a presença de Deus, só podia ser se se encontrava na mais profunda inexistência de poluição até das próprias secreções. A entrada no Templo era restringida aos santos, àqueles que se mantinham puros. Portanto, um das caracteristicas do Templo era ser símbolo pragmático da identidade nacional. Tal como imitava a sociedade judaica, o Templo era hierárquico e político. Todo o espaço era repartido em função do culto mas também dos limites da organização social. No fundo, estava marcado por exclusividades e discriminações, imagem perfeita da concepção social.
O Evangelho de Lucas termina no Templo, os Actos retomam essa ideia afirmando que os discípulos, além da comunhão fraterna, frequentavam o Templo. Só depois, quando Paulo é preso e as “portas do templo se fecham” (Act 21,30) é que se dá a distinção os cristãos face ao Templo numa ruptura definitiva. Em Lucas o Templo é descrito de forma polissémica: é o lugar do sacrifício e dos cultos; é o ponto fulcral da peregrinação, do ensino, do magistério do Sinédrio; é o lugar concreto da residência de Deus entre o seu Povo. Logicamente, o Templo é também importante na identidade de Jesus. Mas porquê, se para Lucas já se encontrava destruído? Porque foi referido e bem vinculado pelo Próprio Jesus a valorização do Templo, como metáfora da identidade de Jesus, “Presença de Deus”, e é um dos elementos fundamentais na teologia deste evangelho. O Templo traz assim a confirmação messiânica de Jesus: é lá que se desvela a essa sua identidade como Messias, onde o Jesus anunciou o seu lugar predominante.
Mas se a salvação é identificada com Jesus, então o Templo torna-se “ambivalente”: se é aceite como estratégia para a identificação de Jesus, segue-se igualmente num sentido de desmitificação do Templo face à plena identificação de Jesus como presença de Deus extraordinária (fora da especificidade do Templo). Por isso se perdoam os pecados fora do Templo, quando essa missão era do Templo. Paradoxalmente, o Templo é também arrasado face a Jesus, pois há uma identificação da Santidade de Jesus que se distingue do Templo: Ele não é nem saduceu, nem jamais esteve próximo dos Santos dos Santos. Daí ser necessário aparecer Jesus menino entre os Doutores da Lei. Há um luto primeiro da família de Jesus porque O perderam, mas para Jesus é o início da História de um outro encontro, uma autonomia essencial para a descoberta e reivindicação da sua identidade. Os doutores “admirados” contribuem para a construção simbólica de uma alternativa ao Templo, que historicamente acontece depois. O templo cristão é Jesus mesmo e depois dele são os próprios cristãos, que comem do seu Corpo, o lugar da habitação do seu Espírito.
Jesus que cumpriu o seu Messianismo fora do Templo, esgotou-o de qualquer relevância: o cristianismo constrói-se no Templo, mas leva a religião para fora do Templo e dos próprios moldes da compreensão do que é religião, indo do “sagrado” ao doméstico. A anunciação a Zacarias ainda se dá no Templo, mas o Nascimento do Messias já se dá numa casa: é o profano e o mundano face ao Templo. Lucas constrói uma tensão de espacialidades, onde coloca as que se fecham e se esvaziam, e as que se abrem como aquela casa que recebe a presença de Deus e passa a templo: Jesus não é aceite no Templo, mas é aceite nas casas, e o cristianismo passa a ser das casas. Este é mais um “renversement” da acção de Deus na História. Este elemento introduz a vitória da casa como lugar da Salvação e é um ponto claro da cristologia de Lucas. Vemos isso na densidade dos acontecimentos dentro de casas no todo da Obra Lucana: É a casa de Pedro, de Zaqueu, todas as casas da Galileia e da Judeia onde é recebido o Hóspede: a Casa tornou-se o lugar do acolhimento da Salvação.
Mais se poderia dizer sobre todos os aspectos que compõem este Evangelho segundo Lucas, mas ficaram aqui alguns traços da riqueza que uma narrativa desta envergadura transporta na expectativa de tocar um leitor.
005| SINÓPTICOS
O projecto evangélico de Mateus
O Evangelho de Mateus é uma narração e era o mais conceituado e considerado nas comunidades primitivas. Este era a âncora para a comunidade como foi para Etty Hillesum no campo de concentração. Apresenta um discurso mais elaborado e maximalista. Mateus tem a preocupação de orientar o leitor na leitura (Mt 13,24). A sua pedagogia é o saciar. Sinal disso são as redundâncias, todos os seus textos e afirmações do autor são confrontados e fundamentados com o AT, “Assim se cumpriu…” e “como foi anunciado pelos profetas…” (Mt 2,23).
Guia proléptico para leitura: Como base cap.1-3, Evangelho da Infância; coluna cap.5, Sermão da Montanha, com centralidade no Pai nosso; cap.10, Dimensão histórica do nascimento da Igreja, dando importância à dimensão comunitária e relegando para um plano inferior o sábado e a família; cap.13, Parábolas, aqui Jesus tematiza o reino de Deus, Semeador, o Grão de Mostarda; cap.18, Discurso eclesial, como se faz e se é um discípulo, cap.24-25, discurso escatológico, linguagem apocalíptica; arquitrave 26-27, relatos da paixão, cúpula 28 (ressurreição).
Este Evangelho é particular também pelas palavras utilizadas e pelo seu destaque no próprio Evangelho: Igreja 3x; Justiça 13x, Justo 17x, Dia do juízo 4x, Juízo 12x, Fogo 12x, entre outras.
A Geneologia: Mt 1,1-17, Mateus tem o objectivo de defender que Jesus é filho de David. As 14 gerações surgem das três consoante da palavra David, em que o “d” representa o 4 e o “v” o 6, 4+6+4=14. Jesus é 3x14, por isso a sua realeza é maior e por isso será maior que David. Neste evangelho encontramos também paralelos com o AT, a tensão entre José e Herodes liga-se com a tensão David e Saul. Isaías profetiza que todas as nações virão adorar o rei, a adoração dos reis magos é disso mesmo personificação e também de todas as nações. Na sua genealogia encontramos Tamar, Raab, Rute, Mulher de Urias e Maria. São todas mulheres ilegítimas ou com nascimentos extraordinários. Como foi o próprio nascimento de Jesus. Estas personagens foram importantes na história da salvação. Como será Jesus.
Que judaísmo tem Jesus diante dos seus olhos? É a pergunta que se nos coloca e teria este judaísmo, Sadueus, Essénios, Fariseus e Zelotas. Jesus atravessava habilmente sobre estes partidos porque a autoridade era fraca. Com os fariseus age como saduceu, para os confundir e os colocar uns contra os outros. Mas o judaísmo visto é o do ano 70, sem o Templo. Sem classe sacerdotal ou poder político, Saduceus, Zelotas e Essénios. Ficam apenas os fariseus, a lei e a palavra, a crise do ano 70 forma um judaísmo farisaico e sinagogal. Mateus transfere para os olhos de Jesus o judaísmo do ano 70. E logo o centro de debate de Jesus é com os fariseus. Mt 17,23-26, No ano 66 Flávio Josefo diz: Os cristãos foram criticados por não combater os romanos. Flávio aponta as razões: 1. Escatologia 2. Há cristãos romanos 3. O exílio é purificador (JEREMIAS) 4. Seguem os exemplos de Jesus 5 Cristo é o centro 6 judaísmo fora da realidade do cristianismo.
Por fim a questão do Nazareno Mt 2,19-23. Algumas explicações Nazir - consagrado, Nazar – aquele que guarda o Espírito de Deus e Nezer - Rebento cf. Is 11,1.
O projecto evangélico de Marcos
Marcos na sua redacção utiliza perícopes mais breves, o que torna o texto mais rápido. Une os episódios apenas com uma partícula copulativa “e”, em grego “kaí”, e como consequência disso a acção acontece-se num ritmo ofegante e acentuado e para isso utiliza os verbos no presente e no gerúndio. O seu discurso é directo, como se estivéssemos dentro dos acontecimentos e a sua linguagem minimalista, torna-se também simples para o leitor, este tipo de escrita é muito comum no grego da Koíne.
A sua Pedagogia é a Fome, a fome da pessoa de Jesus. Por isso o seu grande objectivo e a sua questão, é onde está Jesus. Em dez capítulos muda de local 54 vezes. Na Galileia, as cenas mudam rapidamente o leitor tem dificuldade em situar Jesus, mas uma coisa é certa, à volta de Jesus acontece o progressivo aumento da multidão.
Podemos definir como a Primavera da missão e acção de Jesus quando este está na Galileia e o Inverno é Jerusalém. Na Galileia fugia das multidões em Jerusalém está só. Na Galileia faz milagres e profere parábolas, em Jerusalém é quase passiva a sua acção. Na Galileia o tempo passa rápido, dia após dia. Em Jerusalém acontece uma relentização do tempo, a acção passa de hora em hora. E isto todo para nos conduzir ao centro da vida de Jesus, como está descrito no início do Evangelho, Jesus é o “Filho de Deus” (Lc 1,1).
Um ponto alto e particular neste evangelho é o Segredo Messiânico ou retórica do silêncio, é no silêncio da cruz que se compreende quem é Jesus.
É também chamado de o Evangelho dos discípulos, porque é uma máquina de fazer discípulos e porque só sendo discípulo é que o leitor pode compreender Jesus e este Evangelho.
Um último ponto a destacar deste evangelho é o seu final longo e abrupto Mc 16,1-8. Não terá sido Marcos a concluí-lo e por isso há quem lhe chame também, o final de Marcos, o quinto Evangelho. Este final é um texto literário da antiguidade crista, que tem como objectivo contar a Páscoa do Senhor e consequentemente fechar o evangelho.
Existem várias teses para que Marcos não tenha colocado os relatos pascais. Explicações: 1. Histórico-psicológico, a situação inicial da comunidade era de medo e esse medo era psicológico e consequente afectava a acção dos mesmos; 2. Redaccional, o segredo messiânico, 3. Confessional, sabe mas recusa que o Senhor morreu. 4. Radical, o silêncio coincide com o sepulcro vazio, 5. Apologético, silêncio das mulheres e porque é que Paulo não fala do sepulcro (1 Cor 15). 6. Apologética II, a acusação inicial foi de terem roubado o corpo do Senhor, este final serve como defesa e diz que os discípulos não foram lá, as mulheres não falaram e eles não sabiam que o sepulcro estava vazio.
O projecto evangélico de Lucas
Discurso directo em função dos pagãos. E ao contrário dos restantes sinópticos o narrador é intradiégetico (1ª pessoa). Na sua redacção utiliza muito a Sincrises e a comparação, Jesus – João Baptista, Jesus – Profetas, Jesus – Apóstolos.
A genealogia: Lc 3,23-38. É uma história que começa a partir do primeiro homem, Adão, nele está presente já a vinda do Messias. Caminho e emenda da carência do Homem pecador. Lucas parte do hoje para o passado. Lucas quer ligar Jesus ao Homem, às suas origens. Lucas plasma aqui o seu projecto redaccional a universalidade da salvação. Salvação, o Evangelho de Lucas é o Evangelho da Salvação, Jesus é o salvador. Salvação pela fé Lc7,36-50 e Lc 8,12
Evangelho da infância. Guia para a vida pública de Jesus, antecipa grandes temas teológicos. No relato na anunciação, pivô do evangelho, contêm o essencial do evangelho e a definição cristológica Lc 1, 28-38. Nos capítulos seguintes podem e surgem dúvidas se ele é o messias ou profetas, etc. Antes já tinha sido dito o necessário a seu respeito.
Lc 2,1-21, Maria e José são elementos duma micro história que Lucas liga com uma macro história. Lucas mostra que mesmo numa situação adversa Jesus envolto em panos é prefigurado com o rei Salomão. Gn 3,18 sobre os pastos Jesus é alimento para o Homem decaído. Is 1,3 fatné que significa manjedoura, Ele na manjedoura é apresentado como a nova Torá. O burro e o boi estão presentes para que se cumpra a profecia. O menino impuro por estar coberto de sangue é anúncio do Cristo crucificado.
Neste evangelho podemos identificar uma Teologia alimentar: a mesa, a cozinha. A identidade é defendida e definida através de como vivem a alimentação. A fidelidade do judeu acontece na mesa. O livro do Deuteronómio é um livro de ritos gastronómicos e o livro do Levítico define o que é impuro. Jesus porque escolheu a refeição para a sua definição e perpetuação? Porque bebeu e comeu em comunhão. Lc 7,36; 11,37; 14,1 Jesus revelou se nas refeições. Por exemplo a conversão de Zaqueu é falada à mesa. Lc 14,7-14 é uma passagem que desconcerta, convidar os pobres… Jesus é um benfeitor divino. Mas o seu problema é e será comer com pecadores, porque é isso que lhe vai levar à morte e morte de cruz. Mas faz isso para que todos se salvem porque é nesta mesa que o homem se revela.
Ver Jesus. É o drama da visão é o que torna este evangelho o Evangelho da visão. Há um ver e um não ver. Todos vão a correr, gente que sai de si para ver. O drama da visão tem uma síntese e é a chave de leitura para todo o Evangelho. Lc 24,13-34 é um texto estranho e único de Lucas é um dos fundamentos na obra lucana a história de dois desconhecidos torna-se algo central no evangelho.
Jerusalém-Emaus-Jerusalém, como Gn 1-3 a palavra gerada, o comer e o ver acreditaram. Acontece uma mudança os motivos que os levam a sair de Jerusalém não são os mesmos que os levam a entrar. Este caminho é o caminho pascal. Através dos elementos fundantes como abrir olhos é o passar do ver para o crer (v.16). Dois verbos a destacar sobre o ver, kratao – ver com coração endurecido e guinasko – ver com envolvimento, querer conhecer.
Nazaré é onde a sua morte é prefigurada Lc 4,16-30. Para Lucas Nazaré é importante porque onde começa a sua missão antecipa todo o evangelho. “O Espírito do Senhor está sobre mim”. Ele é o messias e compre a sua missão. Lc 13,33-34 Lc 7,16 Jesus é identificado como profeta, o novo profeta, o novo Moisés.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
Um olhar sobre o Evangelho de Mateus e de Marcos
Assim, estes Evangelhos são escritos sob o mesmo olhar contudo Marcos conta os mesmos acontecimentos mas de forma menos desenvolvida que Mateus. As perícupes de Marcos são simples e pequenas à como que um relato económico. O Evangelho de Marcos adquire velocidade, o leitor não tem descanso na tentativa de encontrar Jesus, este é como que escrito à pressa. Marcos apresenta um Jesus itinerante, não sabemos onde Jesus está. A grande questão deste Evangelho é saber onde está Jesus. Pois este no seu Evangelho é aquele que escapa, o que deambula de um lado para o outro, nem os próprios discípulos o conseguem acompanhar.
Em Mateus a mobilidade de Jesus é constantemente travada por discursos, é um Jesus mais estático. O desenrolar do Evangelho é mais estruturado e organizado, construído em volta de cinco grandes discursos, os quais usa para fundar a nova aliança em Jesus. Aqui, o Mestre, sabemos onde está e que a condição do discípulo é segui-lo, dando-se assim a conhecer para que o sigam.
Olhar o relato da Transfiguração é mais uma vez dar conta das diferenças entra estes dois evangelistas. Em Mateus (Mt 17, 1-13) os discípulos são os que percebem e entendem Jesus, em Marcos (Mc 9, 2-13), sucede o inverso, os discípulos não entendem. Jesus fala da ressurreição e os discípulos começam a discutir sobre o que será isso. O Evangelho de Marcos reporta-nos para as perguntas, elabora uma construção ao jeito de perguntas. Até à experiência do túmulo vazio, onde está Jesus? Mateus é uma leitura de saciedade, de um excesso que se torna em redundância, tudo é muita informação, o que não sucede com Marcos.
Ao ler o Evangelho de Marcos este como que cria fome ao leitor, não o deixa respirar, apresenta um sucessivo desenrolar de acontecimentos que não deixam o leitor respirar. Mateus, podemos dizer que surge em contra ponto onde tudo é saciedade, Mateus dá-nos em abundância, em excesso. Assim, este Evangelho apresenta-se como mais favorável ao trabalho do leitor. Dá ao leitor como que uma sensação de descanso onde sentado pode estar a ouvir Jesus o que não acontece em Marcos. Poder-se-á ainda dizer que Mateus é um Evangelho de edificação de Igreja pois apresenta grandes sínteses catequéticas.
O Evangelho de Mates dá segurança ao leitor, não o faz sentir-se perdido no desenrolar da narração, devido com certeza às suas redundâncias. É como que um excesso de informação, uma saturação positiva do conhecimento que Jesus vai dando aos seus discípulos. É uma leitura segura e controlada, tudo tem o seu tempo e lugar próprio para ser contado. Apreende-se em Mateus a preocupação do narrador em introduzir a história, é uma leitura orientada. Mateus é um mestre intransigente. Em Mateus Jesus não está a fugir mas é o mestre. Este transforma o relato em discurso cheio de autoridade e que não deixa dúvidas. Tem como estratégia a saciedade, o leitor amplamente formado.
Do ponto de vista literário o texto de Mateus é muito bem organizado, daí a sua primazia no cânone, mesmo sendo mais antigo o de Marcos. O que está em causa é o programa teológico criado pelo autores que visa criar unidade. Pois o cento dos Evangelhos é uma pessoa. O Cristo Ressuscitado é o Cristo humano, e é isso que os Evangelhos nos narram procurando rebater uma posição gnóstica. Os Evangelhos, mesmo apresentando em si alguns aspectos onde podem ser contraditórios, são mais do que isso, pois têm também objectivos diferentes. Poder-se-á dizer que o Evangelho de Marcos não está depurado, este trabalho será feito por Mateus e Lucas. Os hiatos, lacunas, esquecimentos, o enigma, a indeterminação que temos nos Evangelhos fazem parte do processo de Revelação. Perante os Evangelhos, percebemos que Jesus é reconhecível, mas eles narram a impossibilidade de O compreender.
O sentido dos números em S. Mateus
Análise de algumas perícopes dos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas
Mc 16, 1- 8
1Passado o sábado, Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para ir embalsamá-lo. 2De manhã, ao nascer do sol, muito cedo, no primeiro dia da semana, foram ao sepulcro. 3Diziam entre si: «Quem nos irá tirar a pedra da entrada do sepulcro?» 4Mas olharam e viram que a pedra tinha sido rolada para o lado; e era muito grande. 5Entrando no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram assustadas. 6Ele disse-lhes: «Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham depositado. 7Ide, pois, e dizei aos seus discípulos e a Pedro: ‘Ele precede-vos a caminho da Galileia; lá o vereis, como vos tinha dito’.» 8Saíram, fugindo do sepulcro, pois estavam a tremer e fora de si. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo.
O final breve do Evangelho de Marcos é um relato estranho no contexto dos Evangelhos porque não tem o relato das aparições do Ressuscitado. Como é possível um Evangelho sem falar da Ressurreição?
Em primeiro lugar é verdade que a Ressurreição de Jesus é anunciada com toda a clareza pelo jovem. Depois, em Marcos, a ressurreição é claramente proclamada: o corpo de Jesus não está onde tinha sido depositado.
A tese mais defendida não é que Marcos tenha escassez de relatos de Ressurreição, mas, pelo contrário, que o relato, e todo o Evangelho, está saturado de Ressurreição.
14O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o seu nome se tornara célebre; e dizia-se: «Este é João Baptista, que ressuscitou de entre os mortos e, por isso, manifesta-se nele o poder de fazer milagres»; 15outros diziam: «É Elias»; outros afirmavam: «É um profeta como um dos outros profetas.» 16Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: «É João, a quem eu degolei, que ressuscitou.» (Mc 6, 14-16)
Aqui temos algo importante: está-se a fazer um debate acerca de Jesus e da sua acção e, no meio desta inquietação, Herodes diz uma frase que parece fora do contexto. A conclusão é errada, mas o que levanta é certo: a acção e ministério de Jesus, no plano narrativo, levam-nos a uma linguagem da ressurreição. O vocabulário da ressurreição está aqui claramente presente. Mas veja-se também Mc 9, 26-27:
26Dando um grande grito e sacudindo-o violentamente, saiu. O jovem ficou como morto, a ponto de a maioria dizer que tinha morrido. 27Mas, tomando-o pela mão, Jesus levantou-o, e ele pôs-se de pé.
Um sentido que se pode encontrar para este final abrupto é que a Ressurreição valida a Cruz, é a validação definitiva e escatológica do gesto da Cruz, que é momento máximo da revelação de Jesus. Mesmo após a sua Ressurreição, o ressuscitado é o crucificado: «Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado?».
Por outro lado, este final fala claramente da necessidade do regresso à Galileia: «Lá me vereis».
É algo que já tinha aparecido no Evangelho: Temos uma primeira referência à Galileia em Mc 1, 14-16:
14Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de Deus, 15dizendo: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho.»
Mas também no início das negações de Pedro em Mc 14, 27-28:
Jesus disse-lhes: «Todos ides abandonar-me, pois está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas hão-de dispersar-se. 28Mas, depois de Eu ressuscitar, hei-de preceder-vos a caminho da Galileia.»”
Assim, o anúncio do final breve de Marcos não é só feito pelo jovem, mas já o próprio Jesus o tinha feito. Encontramos assim uma inclusão de carácter proléptico que encontra agora a sua explicitação.
Um dos aspectos mais intrigantes é o silêncio das mulheres. Mas ele representa um não fechar da narrativa, o que confronta o leitor com a necessidade da interpretação, pois tudo tem de ser reinterpretado. O livro começa na Galileia e aí acaba. O leitor termina o livro e começa-o de novo.
Evangelho de Mateus
Mt 28, 16-20
Os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando o viram, adoraram-no; alguns, no entanto, ainda duvidavam. Aproximando-se deles, Jesus disse-lhes:«Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.»
Esta parte final do Evangelho de Mateus ilumina todo o Evangelho. De facto, o tópico do discipulado é um tema chave em Mateus, que nos leva ao coração do próprio Evangelho. Não é por acaso que a última palavra de Jesus é o mandato de fazer discípulos. Mt é o único Evangelho em que Jesus manda fazer discípulos. O imperativo final é, pois, o programa que Jesus transmite aos seus discípulos.
O que significa este “fazer discípulos”, que nos aparece antes de baptizar? Significa fazer pessoas que guardem a palavra de Jesus, que recebam os ensinamentos. Guardar é colocar diante dos outros e trazer consigo, é guardar de forma explícita no seu coração. O discípulo é aquele que guarda e cumpre a Palavra de Deus. Fazer discípulos é então fazer alguém que guarda e cumpre os cinco grandes discursos de Jesus, pois os cinco discursos de Jesus são o material para a pregação dos Apóstolos.
É pois um Evangelho com um carácter didáctico, uma verdadeira escola cristã, onde surgem discípulos. É o Evangelho mais extenso, atravessado por uma preocupação pedagógica, de uma forma muito sistemática.
Alguns pormenores textuais reforçam este entendimento, como emprego do verbo “fazei discípulos”, que aparece quatro vezes no Novo Testamento, e dessas quatro, três surgem em Mateus. Aqui surge enfaticamente com o sentido de imperativo. Para além disso, o substantivo discípulo aparece 261 vezes no Novo Testamento, mas é em Mateus que essa palavra é mais recorrente. Daqui podemos inferir que o tema do discipulado, semanticamente, é um tema predominante em Mateus. A grande ordem é a de fazer discípulos.
Mas coloca-se a pergunta sobre o significado do «Ide»: para onde? Qual o objecto e destino deste caminho? Aparecem-nos quatro vezes, no interior do Evangelho, uma situação idêntica, que pode trazer uma nova luz a esta questão.
Mt 25, 32:
Mt 24, 14:
Mt 24, 9:
Percebemos assim que o mandato de Jesus é um mandato e apelo à universalidade. A abertura é total. Já em Mt 10, Jesus havia enviado os discípulos em missão. Mas aqui, em Mt 28 há um mandato universal.
A questão do Baptismo é igualmente importante em Mt. O que significa baptizar? Não se trata do baptismo de João, mas de um baptismo novo, que só Cristo é capaz de dar e transmitir. Há aqui também um carácter trinitário, como se a Santíssima Trindade se associasse à acção dos Apóstolos da Igreja.
O próprio lugar onde decorre a cena é também pleno de significado: foi na Galileia que pela primeira vez ressoou a palavra “Reino de Deus”; foi sobre o monte que haviam sido proclamadas as bem-aventuranças, e agora é lá que torna a falar Cristo Ressuscitado. Há pois uma continuidade muito grande: o monte é o Sinai, Jesus é o Novo Moisés, as Bem-aventuranças são a Nova Lei, no monte Jesus fala com autoridade. Temos aqui então um diálogo de paradigmas, de tipologias.
A autoridade com que Jesus fala sobressai nesta perícope, pois as próprias palavras de Jesus são uma manifestação de autoridade. Alguns autores afirmam que esta passagem de Mateus é o cumprimento de Dn 7, 13-14:
Contemplando sempre a visão nocturna, vi aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser semelhante a um filho de homem. Avançou até ao Ancião, diante do qual o conduziram. Foram-lhe dadas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o serviram. O seu império é um império eterno que não passará jamais, e o seu reino nunca será destruído.»
Mas o Evangelho de Mateus supera a profecia de Daniel, pois há um carácter de definitividade, no poder e autoridade recebidos, pois agora é de uma vez para sempre. O “todo” não está confinado a restrições, é um poder completo e total. O Cristo que aparece no final do Evangelho surge com a autoridade plena, típica da dicção de Mateus. Mas, aqui a autoridade é adjectivada, pelo que tem mais densidade.
O que Jesus faz garantir o seu poder e autoridade? Garante a sua presença aos discípulos. «Estou convosco até ao fim dos tempos». O “Estou convosco” é uma expressão teofânica com ressonâncias Veterotestamentárias usada por Deus em muitas situações em que intervém. O Deus do Antigo Testamento é um Deus que está com os personagens que escolhe até que a missão se realize. Há uma alusão clara ao “Emanuel”, segundo o recurso da inclusão, que é um aspecto muito importante no Evangelho de Mateus, como por exemplo em Mt 1, 23: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco. Mateus é, assim, o “Livro do Emanuel”.
13Nesse mesmo dia, dois dos discípulos iam a caminho de uma aldeia chamada Emaús, que ficava a cerca de duas léguas de Jerusalém; 14e conversavam entre si sobre tudo o que acontecera. 15Enquanto conversavam e discutiam, aproximou-se deles o próprio Jesus e pôs-se com eles a caminho; 16*os seus olhos, porém, estavam impedidos de o reconhecer.17Disse-lhes Ele: «Que palavras são essas que trocais entre vós, enquanto caminhais?» Pararam entristecidos. 18E um deles, chamado Cléofas, respondeu: «Tu és o único forasteiro em Jerusalém a ignorar o que lá se passou nestes dias!» 19Perguntou-lhes Ele: «Que foi?» Responderam-lhe: «O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; 20como os sumos sacerdotes e os nossos chefes o entregaram, para ser condenado à morte e crucificado. 21*Nós esperávamos que fosse Ele o que viria redimir Israel, mas, com tudo isto, já lá vai o terceiro dia desde que se deram estas coisas. 22É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deixaram perturbados, porque foram ao sepulcro de madrugada 23e, não achando o seu corpo, vieram dizer que lhes apareceram uns anjos, que afirmavam que Ele vivia. 24Então, alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres tinham dito. Mas, a Ele, não o viram.»25Jesus disse-lhes, então: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito para crer em tudo quanto os profetas anunciaram! 26*Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?» 27*E, começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito. 28Ao chegarem perto da aldeia para onde iam, fez menção de seguir para diante. 29*Os outros, porém, insistiam com Ele, dizendo: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso.» Entrou para ficar com eles. 30*E, quando se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho. 31Então, os seus olhos abriram-se e reconheceram-no; mas Ele desapareceu da sua presença. 32Disseram, então, um ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» 33Levantando-se, voltaram imediatamente para Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os seus companheiros, 34*que lhes disseram: «Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!» 35E eles contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir o pão.
Este relato de Lucas funciona como um micro-evangelho, uma espécie de síntese de todo o Evangelho.
Lucas desenha nesta perícope a experiência pascal da comunidade cristã. Todos os acontecimentos são colocados no quadro de um dia - o dia pascal - pois todos eles encontram na Páscoa a sua fonte, a sua razão de ser. O Evangelista Escolhe dois discípulos quase anónimos, figuras menores no quadro de construção do Evangelho, mas a quem Jesus aparecer e com quem faz a experiência pascal. Querendo dizer, desde logo, que não há figuras secundárias.
O autor conta-nos Jesus em três andamentos: encontro; palavra; casa / mesa.
Os discípulos saem de Jerusalém e realizam um encontro com Jesus. Valoriza-se a dimensão narrativa, não tanto o que Jesus diz, mas o que Ele faz, abrindo canais e deixando-se encontrar. Noutras passagens do Evangelho vemos como Jesus é um Mestre na arte do encontro, como no caso da mulher adúltera e de Zaqueu. Encontrar Jesus é então ser encontrado por Ele.
Os discípulos partem de Jerusalém e voltam a Jerusalém. Fazem o movimento de passar pelas três categorias. No encontro Jesus é um desconhecido, alguém que faz arder o coração; mas em casa e na mesa Jesus é reconhecido.
A mesa, em Lucas, é o lugar do reconhecimento de Jesus, da revelação de Jesus. O sentido da universalidade de Lucas faz com que tenha em mente o simpósio, a refeição literária grega, constituída pela comida e pelo topos (beber). A mesa tem um pacto narrativo, estabelece um protocolo narrativo. Comer é um acto humano, antropológico, e não meramente físico, por isso à mesa não se sentam estranhos.
O Evangelho de Lucas privilegia verdadeiramente a mesa e a casa como espaço privilegiado onde a identidade de Jesus nos é revelada. A casa de Emaús é a última casa onde vemos Jesus, mas há muitas outras anteriormente e são muitas as secções onde sobressai o destaque à casa e à mesa.
Logo no Evangelho da Infância começa com a Anunciação, até à entrada na primeira casa por parte de Jesus: a casa de Isabel. Por isso, o relato do nascimento é importante. Jesus nasce num estábulo e tudo está construído para dar relevo à manjedoura, lugar onde os animais comem. A manjedoura é assim importante para a definição do campo semântico da mesa, pois é o lugar da alimentação dos animais, ou seja, dos impuros. A manjedoura antecipa aquilo que é o tema principal de Lucas: a salvação e a sua universalidade.
Em Lc 7, 36-37 vemos também um fariseu que convida Jesus para comer consigo, o que não acontece nos outros Evangelhos. Lucas é ó único que situa este acontecimento num espaço de refeição e é o único que fala do convite dos fariseus. De facto, o grande momento de vida dos fariseus era a mesa e convidar um profeta para a mesa era um privilégio. Contudo, nunca há coincidência entre Jesus e o anfitrião, há sempre uma tensão.
Lucas começa e termina no Templo, mas o Evangelho constrói-se sobretudo na casa, lugar da revelação de Jesus. A casa é o lugar do habitual, do comum, do profano e do quotidiano. A dimensão da casa é, em Lucas, expressa em torno da mesa.
Porque é que Lucas dá tanta importância à refeição? Não é só porque sabe do seu valor antropológico, nem só porque conhece as categorias helénicas. O alimento tem um papel de primeiro plano na história da salvação como se percebe a partir dos escritos Vetereo Testamentários: o primeiro mandamento de Deus é um mandamento alimentar (não comer da árvore de fruto)
O banquete é o símbolo da tradição escatológica, e servirá de imagem para as parábolas de Jesus, pois sabe que uma refeição em Israel tem um determinado significado. A refeição quotidiana é uma imagem da refeição definitiva. Há assim um peso metafórico da tradição bíblica que faz com que Jesus escolha estrategicamente a casa.
A casa nunca é um lugar neutro: entrar em casa de alguém supõe relação, conhecimento, amizade e Jesus vai utilizar isso para estratégia da sua própria revelação. O campo semântico da refeição / comensalidade segue pois nesta linha. Não são tanto as comidas que estão em jogo, mas sim o banquete. Essa linha começa quando Jesus come pela primeira vez no Evangelho - Lc 5, 27–32 “Vocação de Levi” - e de uma forma que causa imediatamente problemas. É uma refeição comprometedora, pois Levi poderia ter escolhido um local neutro, mas convida-O para sua casa. Penetrar na casa é, assim, comprometer-se, é correr o risco de um compromisso existencial.
Por tudo isto podemos afirmar que em Lucas há verdadeiramente uma teologia da refeição, e essa é uma das linhas semânticas mais significativas de todo o Evangelho.
Análise da História e Discurso no relato da “Ressurreição da filha de Jairo” dos Evangelhos Sinópticos
Mc 5, 21-24 – 35-43
Lc 8, 40-42 – 49-56
Os três Evangelhos Sinópticos contam a história da “Ressurreição da filha de Jairo”. Falam-nos de um “chefe”, que Marcos e Lucas dizem ser da sinagoga, que prostrado aos pés de Jesus lhe implora pela cura da filha. Jesus dirige-se a casa dele e encontrando um grande “alarido” pela morte da menina, repreende os presentes, dizendo-lhes que ela não estava morta mas simplesmente a dormir. Fora dos olhares da multidão, Jesus toma a mão da menina e esta ergue-se.
Se no essencial é esta a história narrada, já quanto ao discurso, ou seja, ao modo como a história é contada, existem grandes variações entre os três Evangelhos. Essas diferenças são muito evidentes sobretudo entre o relato de Mateus e os relatos de Marcos e Lucas. Contudo, mesmo entre os dois últimos podemos encontrar variantes no modo como a história é contada.
Mateus não se detém no que não é essencial para relatar o milagre realizado por Jesus, descrevendo a cena com grande economia de meios: interessa-lhe contar a vida de Jesus e, como tal, pôr em evidência o poder e a autoridade do Cristo. Por isso não nos indica qual o nome do pai da criança e diz-nos apenas que era um “chefe”. Na cena dentro da casa, o Evangelista é também parco de informações, não deixando contudo de referir que no seu interior estavam “flautistas” e uma multidão em grande alarido, descrição aparentemente secundária, mas fundamental para vincar a factualidade da morte física da menina e assim evidenciar ainda mais o carácter sobrenatural da acção de Jesus.
Em Marcos e Lucas o objectivo é também dar-nos a conhecer Jesus e pôr em evidência o poder e a autoridade do Cristo. Contudo, fazem-no com matizes diferentes, com uma narrativa muito mais desenvolvida, mais descritiva, repleta de pormenores, como que transformando o leitor em testemunha da própria cena: «Jesus foi recebido pela multidão»; «ao vê-lo, prostrou-se a seus pés e suplicou instantemente»; «Ainda Ele estava a falar».
Introduzem neste relato também a temática do discipulado e da fé, que é condição para se ser discípulo e para ser contado entre os seus “eleitos”, os que entram no interior da casa: «E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago», ou «Não tenhas receio; crê somente e ela será salva.»
Ambos sublinham o carácter extraordinário da acção de Jesus, referindo o «assombro» e o espanto dos que tomaram conhecimento do sucedido.
Marcos, um pouco mais sucinto do que Lucas, mas grande mestre na arte de contar, introduz um elemento único nos três Evangelhos, transliterando as palavras de Jesus em aramaico, o que imprime grande realismo e vivacidade à cena: «Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûm!», isto é, «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!».
Lucas, por seu lado, fornece-nos muitas informações adicionais, imprimindo um grande colorido à narrativa, que se desenrola frente aos nossos olhos. Logo no início diz-nos que a multidão estava «à sua espera», como que ansiosa por ver Jesus e que a menina era «filha única», o que acentua o carácter dramático da cena. Diz-nos também que a multidão aglomerava-se e apertava Jesus «a ponto de o sufocar». Já no interior da casa, introduz na cena a mãe da criança, que reforça o carácter intimista e familiar da cena, dizendo ainda que Jesus «chamou-a, dizendo em voz alta: Menina, levanta-te!»», como se o próprio leitor estivesse a ouvir Jesus.